25 de setembro de 2010

RITO DE PASSAGEM EM HAYAO MIYAZAKI


Nei Duclós

A passagem para a vida adulta não se faz sem dor. Nos filmes de Hayao Miyazaki (uma coleção assombrosa e inacreditável de obras-primas ao longo de 30 anos) esse rito é assumido por suas personagens (a maioria meninas ) de maneira destemida. A garota enfrenta monstros e pesadelos para garantir a sobrevivência de um sentimento, achar um lugar na vida prática e colocar-se à prova, pois só assim poderá ter direito ao sonho e a uma vida plena. Vemos isso em Nausicaa (1984), Kiki (1989), Mononoke (1997) ou Chihiro (2001). E está presente também Totoro (1988) ou Ponyo (2008). São filmes, em forma de animação, que arrebatam pela suprema arte do gênio, que sobra na narrativa em todas as formas visuais, literárias, dramatúrgicas ou musicais.

Por que esses filmes não estão nas escolas, nas redes de televisão, nas residências e nos cinemas de maneira permanente? A brutalização do público, por meio de uma indústria audiovisual sinistra, não abre guarda para o trabalho de Miyazaki, que faz sucesso, sim, que coloca seus filmes no mundo todo, sim, mas, diante da burrificação geral, está em desvantagem absoluta. Posso falar com propriedade: nunca tinha prestado atenção nesse trabalho primoroso, até que aqui em casa fomos presenteados com a coleção completa. Mas basta ligar a TV para vermos cenas de sadismo, violência sexual, chantagem, falsidade ou assédio em qualquer horário.

Há terror nos filmes de Miyazaki. Há impiedade. Pais são transformados em porcos, meninas selvagens chupam sangue, fantasmas devoram outras criaturas, crianças são seqüestradas, famílias enfrentam a morte, amores se revelam impossíveis. Há uma insânia geral na explosão de criatividade, onde o detalhe funciona como uma enciclopédia de obras de arte, os cenários perfeitos são postos à prova por borrascas devastadoras, alguém em algum lugar voa, trens andam sobre as águas, e há uma floresta cheia de maus espíritos, uma cidade ameaçadora onde cai a noite e a chuva. A doença espreita os fracos e tudo parece irremediavelmente perdido e sem saída.

Mas não há pedofilia, nem racismo, nem abuso, nem maldade de qualquer tipo. Há apenas uma obra focada na formação da cidadania, sem encher o saco de ninguém e sendo, ao contrário, uma fonte emocionante de sedução e alegria, pois o talento faz com que nosso espírito fique habitado. Somos animados pelo que vemos e saímos de cada filme plenamente convicto de que ali está algo insuperável...até vermos o filme seguinte. Você não fica imune à saga de populações em luta contra o Mal em todas as formas, que procuram preservar os deuses e protetores da Natureza, sem nada soar a ecochatice, é apenas a sintonia entre o trabalho artístico e as demandas do nosso tempo sem passar pelo crivo do falso moralismo.

A solidez das histórias vem da solidez da civilização (a japonesa) e das famílias (japonesas). Totalmente focado em sua terra e seu povo, nada mais universal do que a obra desse mestre absoluto. Crianças de qualquer país adoram. Minha neta chega a ficar exausta de tanto ver. Vê todos, pergunta tudo, pede para traduzirem (recebemos cópias na dublagem original, com legendas), elenca seus favoritos e assume sempre, em cada filme, um dos personagens. “Eu sou Ponyo, e você?” pergunta. Eu sou o adulto encantado com essa revelação tardia, em que o gênio nos salva da TV aberta, esse ninho de pavores indissolúveis, em que nada medra a não ser o vazio provocado pela mediocridade.

Um dos vetores mais maravilhosos de Miyazaki é a tecnologia, real ou delirante. O pequeno veículo voador movido a vento da princesa em Nausicaa, o gerador na casa-farol em Ponyo, one há também um barco movido a vela de cera e chama, o gato-ônibus de Totoro. Sem falar nas máquinas tradicionais, como os aviões dos anos 30 neste outro filme genial, Porco Rosso(1992), em que um piloto nos moldes de Humphrey Bogart faz parceria com uma adolescente projetista de aviões para enfrentar os piratas do ar no Adriático.

Quem pode com esse japonês alucinado que fez tudo, desenhou e pintou seus filmes quadro a quadro, levando anos para ultimar cada obra-prima e criou um estúdio onde seu filho e muitos colaboradores multiplicam esse trabalho primoroso em outros lançamentos, todos com a marca de qualidade do mestre? Ninguém pode com ele. No futuro, vai ter sempre um espertinho que colocará em dúvida a capacidade de uma pessoa só fazer tanto. É o que dizem hoje de Shakespeare. Não sabem que o gênio não dá trégua e é completo e que a existência de um só pode redimir todo um século de sombras.

“Gosto de mulher” disse ele certa vez quando lhe perguntaram porque o papel principal é sempre feminino nos seus filmes. Gosta mesmo. O público se apaixona por essas garotas impossíveis, frágeis, pequenas, que peitam monstros e situações terminais sem blefar com absoluta verossimilhança. E há as menininhas da mais remota infância, as mulheres maduras e as velhas, milhares de velhas, trabalhando, protegendo, ou fazendo feitiços, perseguindo. Mulher para tudo o que é lado, sem o ranço do feminismo, corajosas, “reais”, absolutamente encantadoras.

“E você, quem é?” me pergunta a neta diante da história, a mais louca e sábia possível. A resposta é óbvia: todos queremos ser Hayao Miyazaki e como, felizmente, isso é impossível, agradecemos a Deus pela sua fecunda existência. Longa vida aos grandes mensageiros do espírito.

RETORNO - Imagens desta edição: na foto principal, Chihiro enfrenta a bruxa; na do meio, a princesa Mononoke e sua mãe-loba; e na de baixo, a princesa e seu veículo da civilização do vento.

Nenhum comentário:

Postar um comentário