20 de setembro de 2010

NA TERRA DOS FARRAPOS


Nei Duclós

Vejo foto de exposição de gado e noto gente fantasiada, pessoas que conheci vestindo roupas urbanas e junto aos animais premiados ostentavam vestuário gauchesco de grife, da bota ao chapéu brilhando diante das câmaras. Mudo o foco para os desfiles do 20 de Setembro, data maior da Revolução dos Farrapos, em que o povo remediado cavalga pela avenida com aquela dignidade sóbria e quase triste dos povos que tiveram gerações sucessivas sacrificadas na guerra. Levam suas crianças vestidas a caráter, com a chita nos vestidos das meninas e o barbicacho segurando o queixo dos rapazes. Todos também se pilcharam para a ocasião. Não é o que usam todos os dias.

Venho de um lugar e de uma população que tinha ligação direta com a terra e suas roupas eram a pele caseira, tanto para a cozinha e a sala, quanto para as pescarias, nos domingos. À paisana, como diziam, já que a geração dos meus pais era brigadiana, ou oriunda do Exército, ou militava em alguma atividade do governo que, em tempos idos, implantou higiene e saúde em povos ribeirinhos, na grande bacia hidrográfica da minha cidade. Nossos vizinhos caprichavam ainda mais na indumentária típica, daquela espécie sem artificialismo. Era assim que se vestiam, por tradição e necessidade.

Viviam na cidade, mas tinham um pé no campo. Usavam alpargatas Roda, herdada dos árabes, feita de piola na sola e lona na sustentação do pé. As bombachas não tinham o esmero dos eventos farroupilhas, pois eram usadas nos galpões, na venda, no caminhar informal pela calçada. Camisas grossas de flanela no inverno ou de brim ou algodão no verão. Lãs uruguaias forravam as friagens, ponchos pretos cruzavam tempestades e um palheiro, cigarro feito na ponta do dedo com canivete de qualidade, fazia companhia no clima hostil.

Nós, garotos, acompanhávamos esses modelos do nosso jeito, muitas vezes sem muito conforto. Preferíamos as calças de brim coringa ou far-west, ou os ternos brancos de linho que acompanhavam a gomina no cabelo para o futing da praça ou as reuniões dançantes. Mas no geral, quando éramos convocados para a pesca ou outras lides pampeiras, usávamos as miniaturas do que víamos dos adultos. Nos embobachávamos como desse, colocávamos boinas poderosas no cocoruto raspado e obedecíamos as ordens porque tínhamos, forçosamente, juízo.

Era um Rio Grande do Sul avesso a máscaras e sincero de dar dó. A simplicidade chegava a ser, nos mais distraídos, uma ostentação. O linguajar chucro, másculo, reforçava os panos que púnhamos. Mas nos vingávamos das imposições nos gaúchos que viviam no interior do município e que vinham com muito mais rigor na roupa típica, o que provocava em nós, tidos como janotas da cidade, risos convulsos nas esquinas. Não chegava a sair briga, pois disparávamos ao brilho de um facão ou ao som de um grito. Mas muitos de nós sofreram o impacto dos relhaços que os carroceiros, gente dura que trafegava por todos os quadrantes, aplicavam nos engraçadinhos.

Meu pai passou a vida contando como levou um lategaço do vendedor de alguma coisa, leite ou verduras, porque tinha debochado do sujeito, ou então fora covardia do mais velho, mesmo. Meu pai era órfão e vivia com irmãos, irmãs e uma mãe em dificuldades financeiras, pois o marido, cantor de ópera de circos mambembes, fugira um belo dia deixando-a com a filharada. O menino vestia-se miseravelmente, mas assim mesmo tinha a petulância dos críticos dos hábitos alheios. Ou então foi pura molecagem, sem outra razão ou motivo.

Aquilo lhe marcou. Cultivou um olhar poderoso para quem se atravessasse no seu caminho. Aprendera a vestir uma couraça naquele episódio longínquo da infância, em que a falta de um pai lhe presenteou com a surra e jamais com o apoio de um amigo forte dentro de casa. Mas com o tempo, adotava uma expressão desarmada, doce, principalmente quando o visitávamos nas férias escolares, depois que tínhamos nos mudado para a capital.


Também tive minhas querelas com pessoas que se vestiam como gaúchos, pois não enxergava o quanto eu era fronteiriço no vestir e falar. Só caiu a ficha quando cheguei a Porto Alegre, onde as pessoas adotavam o chiado de chaleira para imitar a capital da República, o Rio de Janeiro. Ao destilar as primeiras palavras, é que notei quem eu era e de onde tinha vindo. Foi quando me perguntaram, seriamente:

- Mas tu é argentino?


RETORNO - Foto maior tirei daqui. A de baixo é um detalhe de foto do seu Ortiz Duclós tirada pelo meu irmão Luís Carlos.

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