1 de dezembro de 2009

ABIGEATO



Nei Duclós (*)

As confusões em que nos metemos com a língua portuguesa têm a ver com problemas reais. Desconfio que o trágico desaparecimento do hífen, um acasalamento impróprio de vocábulos não afins, está relacionado com o amontoamento coletivo nas cidades. Não existem mais portões confiáveis, que nos separavam da vizinhança. Hoje há um prolongamento habitacional que é o fim da hifenização urbana, ou seja, da privacidade.

Quando a morte começou a correr risco, no lugar da vida, imagino que houve uma troca substancial de papéis. As pessoas não vivem mais, portanto não correm mais risco de vida. Com milhares de assassinatos, acidentes de trânsito, epidemias, enchentes, furacões, balas perdidas, a morte banalizada às vezes pode perder a parada. É o risco que ela corre de alguém sobreviver.

São tantas as transgressões, especialmente as oficializadas, que sumiu o hábito de discutir soluções gramaticais. O vale-tudo das modificações funciona como agente desagregador, estimulado pelos truques da informática. Não brigo mais com a revisão, mas com o word. Ele completa palavras, destrói frases, insiste em soluções que abomino. Quem inventou essas ferramentas deve ter incorporado o espírito mau dos que fiscalizavam o uso da linguagem para que ela não deslanchasse.

Quando tudo é feito para facilitar, a encrenca é certa. Daqui a pouco eliminam a crase, que é tão sofisticada quanto a lei do impedimento no futebol. Vamos imaginar um jogo de bola que permita a banheira, aquela covardia de atacantes isolados se prevalecendo de goleiros indefesos. Seria tão desastroso quanto não permitir a soma de conceitos (artigo, preposição) na primeira letra do alfabeto.

A marginalização social tem seu representante no abandono de conjugações, como o subjuntivo; de construções elegantes, como a mesóclise; ou de palavras estranhas, como abigeato que, como dizia o velho diretor de redação para os jovens repórteres de vanguarda, “todo mundo sabe que é roubo de gado”. Não significa que devemos nos entregar à heterodoxia excessiva, mas é bom preservar alguns tesouros perdidos, pois assim estaremos promovendo a alteridade, a sustentabilidade, a inclusão, atitudes que estão na moda. Só que, gastas de tanto uso, podem ser empurradas para o mesmo destino do abigeato.

RETORNO - 1. Imagem desta edição: tirei daqui. 2. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 1º de dezembro de 2009, no caderno Variedades, do Diário Catarinense.

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