5 de fevereiro de 2009

CINCO BANDEIDES E UM SAMOVAR


Nei Duclós

Fui obrigado a ficar na Rússia por quatro meses, tempos atrás, num frio que quase me matou. Foi numa região próxima à Sibéria, dentro de uma casa abandonada. O dono, um sujeito ruivo retaco com dentes da frente separados (vi pelas fotos que deixou lá num pacote escondido no fundo da gaveta do criado-mudo) devia ser algum caixeiro viajante que nunca estava em casa ou um aposentado que migrava na época do inverno para areias tropicais. Como fui parar lá? Demorei a descobrir os fatos reais que me condicionaram a essa prisão de gelo por uma longa estação. Porque tudo ficou nebuloso por um tempo.

Quando voltei para cá, usando os documentos do sujeito que me cedera involuntariamente a moradia, usava o mesmo cabelo de milho dele e cuidei para criar a impressão de que tinha os dois dentes da frente separados, como naquela caricatura da revista Mad. Como fiquei encolhido naquele inverno interminável, também ostentava uma aparência um pouco retaca, que ficara mais explícita ao usar as roupas encontradas dentro do armário (estavam mofando mesmo, não foi praticamente um roubo, mas uma recuperação). Eu me transformara no sujeito e conseguia dizer algumas palavras em russo, cuidando para salivar bastante quando pronunciasse niet, enquanto carregava nos erres em grrrusionovna, por exemplo. Com isso fui passando nas barreiras, sempre distribuindo sorrisos ou cenhos carregados, conforme a ocasião, e assim consegui pegar um avião de Moscou ao Rio de Janeiro, sem que desconfiassem de nada.

Mas estou me adiantando. Lembro que fui jogado na neve numa noite tenebrosa, usando minhas roupas de verão. Fora seqüestrado aqui na praia e rapidamente me encontrava no outro lado do mundo. Por que, o que acontecera? Na hora não atinava. Só sei que imediatamente depois que me abandonaram na neve, para morrer, dei um pulo em direção a uma sombra protuberante que se sobressaía do chão. Era o telhado de uma casa submersa. Rompi aos pontapés a janelinha do sótão, que estava encostada no piso de neve, que subira até o teto. Logo que entrei procurei fósforos para acender a lareira, mas a chaminé estava entupida. Vesti umas roupas grosseiras e cheias de pêlos que encontrei atiradas na sala e voltei para o lado de fora, a essa altura sofrendo de grave hipotermia. Com um atiçador de lareira, rompi o gelo da chaminé e desci novamente, tendo o cuidado de tapar a janelinha salvadora.

Foi assim que consegui fazer fogo, comida logo em seguida, pois o que não faltava na dispensa da casa era carne congelada (de cavalo, de cervo, sei lá). O lugar dispunha de uma infra de luz elétrica, mas eu não soube ligar o gerador. Por isso passei no escuro uns dias até que caiu minha ficha de cavar ao lado de uma janela e assim poder ter alguma luz de fora, se é que posso chamar de luz aquele ambiente acinzentado. Engraçado, o ar russo, o clima, a cor daquelas paragens, me lembravam o cativeiro a que fora confinado na minha viagem da praia às estepes congeladas.

Pois foi isso que aconteceu: me seqüestraram com Gol e tudo e me colocaram dentro de um lugar amplo e branco-acinzentado. Uma espécie de espuma foi tomando conta de tudo, dos vidros fora do carro e agora dentro. Cheguei a provar aquela espuma gosmenta e me deu um barato parecido com o de morfina, que eu conhecia, pois um dia me operei e me ministraram uma única e inesquecível dose daquela droga bandida. Fiquei praticamente imobilizado com a espuma, apesar de ostentar a alegria imbecil e delirante dos drogados. Mas tive o cuidado, antes de me ralar, de abrir o porta-luvas, de lá tatear uma caixinha de bandeides e colocar cinco no rosto: dois nos olhos, um no nariz e mais dois nos ouvidos. Assim, fui puxado para fora.

As criaturas que me seqüestraram acharam, imagino , que os bandeides faziam parte de mim e nem deram bola para aquilo. Mas aos poucos se deram conta e começaram a arrancar um por um. Eu ainda estava lúcido, pois não via, nem cheirava nem escutava nada, graças às proteções que coloquei nos orifícios do rosto. Foi aí que vi aquela cabeçorra, parecida com a de formigas gigantes, com olhos oceânicos olhando para mim. Os brutos imitaram o aspecto de formigas, pois quando chegaram por aqui acharam que essa espécie é que dominava a terra. Só depois descobririam que os humanos faziam todo o serviço, mas aí já era tarde demais. Assumiram o aspecto hediondo, no lugar de clonar a Gisele Bünchen e o Tom Cruise.

Até foi bom assim, senão meu pesadelo seria uma espécie de blockbuster cientologístico onde o galã comeria a bandida brasileira e aí sim seria um grande sofrimento. Como eu estava lúcido, resolvi aprontar. E comecei a dar pontapés para tudo que é lado, pois o efeito da espuma estava passando. Até que acertei o gigante que me examinava. O cara deve ter ficado muito puto, pois saiu uma gosma preta da testarra dele. Sangue ou tinta, que sei eu. Só sei que resolveram se livrar de mim e me jogaram na neve para me foder. Acreditavam que eu iria congelar para sempre, já que me pegaram na praia e eu usava apenas uma camiseta cavada, uma calça de tectel e um par de sandálias havaianas. E eles nem tinham notado a casa semi-enterrada na neve. O lugar era ermo total.

A verdade é que sobrevivi e deixei o inverno passar. Quando a casa ficou livre da neve, descobri que havia uma garagem ao lado. Lá dentro havia um portentoso carro amarelão, deveria ser Lada, todo caro russo é Lada. Eu não entendo nada de russo, desisti de ler os livros que ficavam espalhados por lá, não descobri nem o nome dos autores. Deveriam ser os de sempre: Puchkin, Gorki, Turguienev, Tolstoi, Tchecov. Mas eu era um analfabeto louco para voltar para casa. Logo atinei que jamais acreditariam em mim e por isso armei todo o esquema de me fantasiar de Vassili Illianovitch Serguienvski, que era o nome do sujeito que clonei.

Como tinha encontrado vários maços de rublos na casa (seria o cara um traficante?) , fui pondo gasolina na longa viagem de volta, que fiz de carro até Moscou. Lá, peguei o avião para o Rio de Janeiro e depois para cá. Decidi não contar nada a ninguém. Aqui em casa, no início nem me reconheceram. Eu cheguei perguntando pelo samovar e quase me expulsaram. Aos poucos, me reacostumei ao café e deixei essa besteira de samovar para lá. Mas os bandeides eu jamais esqueço. São meus talismãs. Sempre tenho uma caixa generosa no armário. A toda hora, coloco um para ficar protegido. Eles um dia me salvaram. Poderão me salvar de novo.

RETORNO - Imagem que ilustra este conto: a casa perdida na neve onde Dr. Jivago e Lara se esconderam, no imortal filme de David Lean.

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