3 de fevereiro de 2009

ARGENTINOS


Nei Duclós (*)

Os argentinos são uma classe média que resistiu às pressões para desinventá-la. Diferente da nossa, que foi para o ralo. Não em termos econômicos, já que hoje existe no Brasil mais gente nessa faixa entre a riqueza e a miséria do que décadas atrás. Mas em comportamento, fruto de uma cultura, antes apoiada e hoje inspirada numa estabilidade. Imagino os argentinos em hábitos antigos, não necessariamente verdadeiros, como se ainda sentassem em cadeira preguiçosa na calçada para conversar. Com famílias nucleares tradicionais, com direito até a reuniões de domingo. Não que isso tenha desaparecido no Brasil. Simplesmente entre nós não é mais visível, deixou de fazer parte do perfil da nação.

A conversa ao anoitecer, a reunião familiar, com pai, mãe, genro, cunhado, avô, todos vivendo juntos ou perto, são coisas que sumiram de vista no país de todos. Aqui, o tronco saradão tatuado sobre pernas curtas (o antigo e popular “cachorro em pé”), o baticum insuportável em todos os cantos, os bonés, o empurra-empurra, a divisão étnica e geográfica em infindáveis nichos, o comportamento coletivo visigodo, a brutalidade no trânsito definem o Brasil agora. Insisto: não que essas barras não existam na Argentina. Só que lá, acredito, não tomaram conta da imagem da nação, aquela sólida autopercepção de uma sociedade nacional.

Quando vejo argentinos em grupos, vejo uma nação. Vejo o admirável cinema que fazem, talvez hoje um dos melhores do mundo, vejo os panelaços que expulsaram sucessivos presidentes, vejo a cobrança contra a época da ditadura, já que lá eles não se iludiram de que se livraram da tirania. Mais uma vez: não que sejam perfeitos ou ótimos ou essa coisinha de Jesus que imaginam ser. Mas é que todas essas ações fazem parte de uma alma comum, uma vivência compartilhada, um reconhecimento mútuo.

Claro que essas constatações são altamente contestáveis. Os próprios argentinos talvez não acreditem mais nisso. Mas é bom pensar que nossos vizinhos provaram que existe a chance de serem um país íntegro, não esbagaçado em crueldades e vilezas, longe de governantes impunes e facínoras ocupando sucessivamente posições de destaque. A Argentina não vale o que ostenta, dizem seus desafetos. Mas vale pelo exemplo.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 3 de fevereiro de 2009, no caderno Variedades do Diário Catarinense. 2. Imagem desta edição: cena do magnifico filme argentino "Clube da Lua", a luta da classe média contra o sucateamento promovido pela ditadura da especulação financeira.

3. Deu no Diário Catarinense: duas famílias, cada uma com dois carros, se desentenderam na passagem de uma ponte estreita em direção a uma cascata, em Santo Amaro da Imperatriz, aqui perto. Uma família ia, outra voltava. Queriam, cada uma, passar primeiro. Houve desentedimento e uma briga coletiva, com facões e outros instrumentos de guerra. Pessoas feridas gravemente e um rapaz de 23 anos morto. A polícia diz que havia cachaça no meio, estavam embriados. É muito pior do que um porre. É o país desconstruído.

4. Lembra da música italiana? Ela continua existindo, neste
site, que me foi enviado pelo considerado mestre Moacir Japiassu. Curta, mas não deixa ligado o dia inteiro, senão dará problemas no servidor. Ouça Domenico Modugno, na voz de Gigliola Cinquetti, comparando o movimento das nuvens aos lenços que saúdam o amor. Ou o próprio Modugno, voando, pintado de azul, no azul dos olhos da amada, pontuados de estrelas. Ah, aquela música eterna!

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