15 de fevereiro de 2008

A REITERAÇÃO DA AMÉRICA




Todos os filmes americanos são sobre a América. É o que acontece com alguns lançamentos, como American Gangster, de Ridley Scott, com Russel Crowell e Denzel Washington, que defende o papel histórico do negro na formação das grandes máfias, antes restrito no imaginário cinematográfico às etnias brancas. Ou de Instinto Secreto, com Kevin Kostner e William Hurt, em que o principal objetivo da nação imperial, matar, aparece como vício incurável e coloca a questão como uma divisão interna da cidadania, uma bem comportada e outra assassina, com grandes chances de se reproduzir geneticamente pelos séculos afora. Ou ainda de O Vidente, com Nicolas Cage e Jéssica Biel, em que um argumento policial clássico – o cara com poderes especiais que disfarça seu talento em shows de mágica – é distorcido pela necessidade de o Estado americano interferir no cinema impondo o tema terrorismo de ameaça nuclear, que acaba colocando o filme a perder.

O único que presta é sem dúvida American Gangster (o título em português, claro, erra, pois fica apenas O gângster, tirando assim o motivo principal da trama, que é focar a presença de um legítimo americano no território que pertencia apenas a italianos e irlandeses). Impressionante narrativa sobre os anos 70, resgata o episódio candente de o tráfico pesado de heroína ser feito usando o aparato militar que invadia o Vietnã. O Império enfim denunciado? Nada disso. No momento em que o avião militar transporta a droga, a América migra para o policial incorruptível. No momento em que este recusa ficar com milhão de dólares achados num carro de traficantes, a América foge dos policiais corruptos, que se vendiam por um punhado de moedas. E, paradoxalmente, no momento em que o mega-traficante negro convoca a família para seu negócio, a América se revela na inclusão das minorias no grand monde da liquidez imperial.

Esse jogo de gato e rato que procura enquadrar a denúncia nos limites do jogo democrático nada tem a ver com a oposição, o confronto que fazem cineastas de vanguarda como Godard, que desconstrói o mito americano ao negar-lhe originalidade cultural e colocá-lo sob a bandeira da vampirização de todas as vivências fora de suas fronteiras. Ridley Scott procura atingir a essência da América com seu filme de quase três horas de duração, mas não foge ao círculo de giz que confina as cabeças dos cineastas à existência no território imperial sem poder insurgir-se de fato, sob pena de traição. A verdade é que essa insurgência não existe, pois as pessoas estão convencidas que na guerra é preciso tomar partido.

É o que diz um dos produtores de O Vidente no making off. Existe uma luta entre dois lados, você precisa ficar do lado certo, disse ele. E o lado certo é evitar que uma bomba nuclear seja detonada na Califórnia. Em redor dessa barbaridade circulam vários desperdícios. O de Cage, que faz mais um blockbuster, sendo ele um ator esforçado que poderia render melhor; o de Jéssica Biel, linda, que acaba virando joguete nas mãos de terroristas internacionais, o que é um destino trágico para a doçura de seu personagem, que poderia crescer se a trama ficasse confinada ao argumento original; e de recursos, pois se gasta os tubos para fazer um filme que acaba sendo uma grande porcaria.

O que salva Instinto Secreto do fracasso absoluto é a presença de William Hurt, esse ator minimalista numa galeria de excessos histriônicos. Basta vê-lo como alter ego de Costner em Instinto Secreto. Hurt dá show como a lúcida projeção da mente do assassino, enquanto Coster faz coreografias artificiais para mostrar como é tarado na hora de matar. Costner tenta ser mínimo também, mas se entrega, pois é um ator limitado. Ao contrário de Hurt, realmente assustador no seu papel em que encarna a essência da maldição americana: o de matar sempre, principalmente quando não há motivo. É aparentemente o oposto da matança oficial, que invoca a democracia, a paz, e o american way of life para colocar as patas nos outros países. Mas no fundo é a mesma coisa: escolhe-se uma vítima e pôu nela. E depois parte-se para outra.

Vi o trailer do Rambo IV: lá está a tara de novo. A gula de matar a diferença, para que o Mesmo (eles) triunfem todos os dias. Se pararem de matar, poderão desaparecer da face da terra. Ou , pelo menos, vai desaparecer essa massa de filmes que disseminam a doença terminal americana para incautos telçespectadores do mundo inteiro, transformando-os em aliados, numa progressão perversa que a tudo destrói.

RETORNO - 1. Imagens de hoje, pela ordem: Russel e Denzel no filme de Scott; Costner e Hurt no "Instinto Secreto"; e Cage e Biel em "O vidente". 2. Saiu no Almanaque Gaúcho desta sexta-feira, dia 15 de fevereiro, na Zero Hora: A frase "Com seu clima e seu rumor" foi incluída erroneamente ao final do poema O nome da terra, de Nei Duclós, publicado na edição de 13 de fevereiro.

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