12 de fevereiro de 2008

CITAÇÕES CENTENÁRIAS


Nei Duclós (*)

Citar de memória é a verdadeira citação. Citar letra por letra é plágio. Não que as sutis mudanças introduzidas, sem má-fé, na frase original, sejam o passaporte para a originalidade. Criação é outra coisa, diferente de pegar carona no pensamento alheio, que exige mais do que pose.

Impõe-se primeiro a prudência, e depois o pudor, pois o cuidado para não distorcer convive com a vergonha de se fazer passar pelo autor. Essas duas virtudes podem manter o sabor do original, que na fonte foi concebido sem o pecado do cânone, da cultura estabelecida e incontestável.

Tanto cuidado serve para não aborrecer o leitor, que tem olho treinado para pular tudo o que finge ser erudição. Ostentar sabedoria é a prova mais completa de provincianismo. É fruto perverso da solidão intelectual, a que ceva a ilusão de que somos únicos.

Citações barrocas crivada de aspas, números romanos e referências em língua morta empurram a leitura para fora da página. Já a honestidade de uma lembrança, de algo que há tempos fez a cabeça, conserva a força inaugural do pensamento famoso. Atrai a simpatia de quem jamais ouvir falar no assunto, ou se convenceu de que nunca escreveria algo semelhante (a atual arrogância nasce da falta de parâmetros, que precisam ser resgatados, não para reinventar a humildade, mas pelo menos para gerar algum silêncio na algaravia).

Vestida assim desse uniforme de guerra, costurado como sintonia entre a grande sacada e as águas rasas, a citação acompanha a marcha humana dos dias contados e se expressa sem os estandartes que, merecidamente, deveriam anunciá-la.

Há autores que usam as duas formas. Jorge Luis Borges, por exemplo, tanto repassa a majestade de sua biblioteca quanto nos convence que leu há tempos uma passagem da qual, nos parece, não se recorda inteiramente, preferindo selecionar apenas uma de suas múltiplas faces.

Melhor ainda é citar Borges, que intercala entre tantos mestres sua verve treinada pelos mistérios, seu talento especializado em abismos. Em Novas Inquisições (ou seria em O Fazedor?) ele chama a atenção para a injustiça que se comete quando focamos apenas um aspecto de um grande autor. Deixamos de lado uma produção tratada como resto, ou simplesmente esquecida. Ou nem prestamos atenção numa qualidade que melhor definiria a personagem, que por obra dessa indiferença, ocupa o imaginário numa posição cristalizada, mas incômoda.

Borges não se conforma com a imagem acabada de suas notoriedades favoritas e fustiga seus admiradores, levando-os para platôs de onde se descortinam possibilidades antes consideradas remotas ou inverossímeis.

Essa ambivalência de Borges (a frase reproduzida fielmente e a citação diluída na sua teia de palavras) faz parte do seu gênio. São dois Borges, como revela, numa página antológica. Um que passeia a esmo e vê vitrines e outro que recebe prêmios e publica livros. Qual dos dois denuncia a divisão interna? Ficamos na dúvida e esse sentimento é o degrau que nos falta quando decidimos mergulhar com prudência no desconhecido, e somos colhidos pelo pudor da nossa individualidade, nua diante do cosmo ingrato.

As citações são como pragas em efemérides que se reportam às celebridades das nossas letras. Machado de Assis e Guimarães Rosa compartilham 2008 com seus centenários de morte e nascimento, respectivamente. Que sejamos poupados do excesso de batatas aos vencedores e de vivências muito perigosas.

RETORNO- 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 12 de fevereiro de 2008, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: Jorge Luis Borges.

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