18 de fevereiro de 2008

EDMUNDO, A LA RAYMOND CHANDLER


Edmundo é tipo de cara que pode assassinar os mascotes se eles atrapalharem sua entrada triunfal no gramado envergando a camisa 10 do Vasco. Por sorte, os mascotes foram arrancados do seu pêlo antes que puxasse a arma. Mas a tentativa de interromper-lhe a glória serviu para despertar seus piores instintos, se é que ele possui instintos melhores. Num clássico como o de ontem, contra o Flamengo, que valia vaga para final da Taça Guanabara, todo mundo se põe a rosnar, mas Edmundo rosna melhor.

Quando deu um chute criminoso para quebrar o braço do adversário, seus olhos transmitiam a profundidade líquida de um famoso poço medieval. Alguém poderia atirar uma moeda nele e ouvir o barulho da água só depois de algumas horas. Acompanhava esse olhar sem fundo uma boca semi-aberta, que parecia sorver o ar que lhe faltava, mas era apenas a catatonia do gosto de sal e ferrugem quando faz jorrar o sangue. A cena do pontapé no osso alheio não era grande coisa. Tinha um pouco menos impacto do que uma blitz na favela desencadeada apenas para disseminar balas perdidas.

Jamais peça a bola para Edmundo, ele vai rir dessa piada quando estiver de folga. Gosta de carregá-la embaixo do braço e partir para o campo adversário com a certeza de que não será preso se capotar sua Land Rover três vezes. É chegado em carrões, tão possantes que nem precisam de motorista, basta colocar a mão no volante para manter as aparências. O cheiro da transgressão é tão forte que ele quase pode beber. Joga duro, mas finge que é puro talento. É como se fumasse cachimbo, o típico gesto de quem desiste de pensar fazendo pose de pensador. Costuma dar certo. Sempre tem torcedor que sente saudade quando Edmundo demolia adversários depois de alguns sopapos, aplicados pelo simples fato de que ousaram se colocar à sua frente.

Seu ideal de vida é ficar frente a frente ao goleiro na hora do pênalty para justificar sua fama. Mas o destino é perverso com Edmundo e lhe rouba o sonho. Ele toca no canto com um chute tão pálido que parece ser de seda quando rasga só de alguém tentar acenar para ele. Isso reverte totalmente o quadro pintado para o herói. Não pode mais manter a esperança de os torcedores vê-lo jogar protegido por guarda-costas, que medem um metro e noventa oito e usam casacos grossos com botões do tamanho de bolas de golfe. Desperdiçou mais essa chance, o que já faz parte de sua natureza.

O que fará Edmundo na sua aposentadoria, que não chega nunca? Não poderá ser treinador, pois o futebol não é, como imagina, um jogo solo, de apenas uma pessoa em campo, ele mesmo. Não poderá ser cartola, daria muito na vista. Nem servirá como embaixador do futebol brasileiro, como Pelé ou Romário, pois não fez mil gols nem foi campeão do mundo. Também é improvável que monte uma casa de ferragens, como muitos craques do passado, já que poderia usar as serras, martelos, grampos, para realizar suas fantasias.

Uma boa opção é virar guarda-costa. Já tem o principal, que é a cara de mau. Ajuda o currículo, que acumula um prontuário invejável. Poderia assim extravasar seus instintos, sempre à flor da pele. Chutaria costelas, o que é do seu estilo. E poderia até dar autógrafos, desde que não pedissem para desenvolver uma dedicatória. Continuaria assim a grande estrela que é.

De vez em quando seria convidado para relembrar os bons tempos. Vai ser difícil convencê-lo a não levar o soco inglês que carrega para qualquer eventualidade. E lembrá-lo que não deve descarregar o revólver na bola. Ela serve para outra coisa, dirão, e Edmundo vai encarar o interlocutor com aquele olhar aquoso, que devolve moedas como se fossem balas, no dobro da velocidade com que foram jogadas.

RETORNO - É isso que dá ler o clássico “Adeus, minha adorada” (L&PM Pocket), de Raymond Chandler com a televisão ligada na Globo no domingo à tarde. As frases de Chandler cabem no perfil de Edmundo com a mesma crueza com que Philippe Marlowe enfrenta um caso intrincado. A imagem é da versão de 1975 de "Farewell my lovely", com Charlotte Rampling e Robert Mitchum.

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