26 de fevereiro de 2008

OS FRASISTAS


Nei Duclós (*)

A frase inesquecível é o narcisismo da linguagem. É quando a obra se olha no espelho e diz: bela estampa, você tem futuro. Alguns autores se aprofundaram nessa arte, que é a garantia da permanência. Você pode esquecer romances e peças de Oscar Wilde, mas ele sempre será lembrado como alguém que levava seu diário para viagem, pois assim teria algo para ler. Raymond Chandler sabia que seus romances policiais não dispunham de prestígio (o que foi contrariado pelo tempo) e vingava-se com tiradas primorosas. A melhor é sobre alguém que ficara famoso exatamente pelas frases curtas.

Seu detetive Philipe Marlowe, de “Adeus, minha adorada”, apelidou certo policial corrupto de Hemingway. A autoridade, claro, não entendeu e pediu satisfações. É alguém que repete sempre a mesma coisa até que todo mundo passa a acreditar que tenha algum valor, disse o escritor, pela voz do personagem. Mas a estocada no sujeito considerado o maior entre os pares nem chega perto de outras jóias, o que torna o convívio com as histórias de Chandler um permanente levantar de cabeça para as gargalhadas.

Frente a um gangster gigante, o detetive define sua inferioridade física dizendo que ambos se puseram a rosnar, mas o adversário rosnava melhor. Ao arriscar uma piada na delegacia, o inspetor avisou que iria rir dela no seu dia de folga. Com pena de sua vítima, Marlowe colocou o uísque a uma altura que ela pudesse alcançar, se não estivesse de mãos amarradas. Nesse ambiente, gente de classe só rouba grandes quantias. Possuem carros estrangeiros que praticamente andam sozinhos, mas é prudente colocar as mãos no volante para manter as aparências.

Chandler não queria apenas nos divertir. Ele era um frasista compulsivo. Conheci vários em diferentes cidades. Um frasista primoroso é Mino Carta, pintor, jornalista e romancista, com quem trabalhei seis longos anos na década de 80. Tudo no Brasil é mistura de QI baixo com sacanagem, disse ele uma vez, num rompante injusto, mas brilhante. Aliás, a arte de criar frases inesquecíveis é, como todas as outras, um exercício de liberdade. Precisamos deixar de ser tão brasileiros, dizia, quando cometíamos uma das gafes comuns que fazem parte do acervo nacional. Fulano sempre concorda com quem estiver mais perto dele, era outra lança certeira com que brindava a falsidade.

Não é justo passar de frases escritas para outras, orais, ainda mais de autoria de alguém que escreveu tanto. Mas também existe graça na lembrança, e não apenas na leitura. Por isso costumo resgatar a frase imortal do carola gigantesco, calvo, de roupas apertadas, manco, que puxava as procissões com sua voz de barítono. A gurizada, escolada na mais absoluta crueldade, implicava com o santo, principalmente em eventos importantes, em que havia a chance de arrancar o riso solto da multidão.

No momento solene em que o enorme devoto, de sobrenome Lapitz, chegava em frente à Catedral, um garoto se postou em sua frente gritando: “Cala a boca, véio Lápis”. Não tão incomodado com a corruptela de seu sobrenome húngaro, a qual já estava acostumado, e mais afeito a defender a fé que exibia com tanto fervor, o homem rosnou, brandindo o comprido crucifixo de prata que carregava com as duas mãos:
- Sai da frente, moleque, senão te dou um Cristaço!

Vai ver as melhores frases são as que saem sem querer, revelando o que temos de mais contundente.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: Raymond Chandler.

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