29 de outubro de 2007

A FORÇA DA PESSOA



A vida pessoal nada tem a ver com a pessoa. Onde cabe Zaratustra na cama de enfermo de Nietzche? E Nietzche é Zaratustra, essa é a persona, essa é a que vale. Isso se aplica indefinidamente. É moda agora dizer que o Imperador foi para o matinho na hora de proclamar a Independência. Ou que Deodoro acabou com o Império vestindo pijamas. Ou seja, estão confundido tudo. Temos um corpo precário, escasso e datado. O que somos não são nossos espirros, mas a viagem profunda que fazemos no Tempo e a marca que conseguimos imprimir nele. Isso fica claro quando falamos de Nara Leão.

A Globo resolveu colocar sua colher torta na Bossa Nova mostrando num especial recente a Narinha sem voz, que se apaixonou pelo Bôscoli, que teve filhos e que sei eu mais. Perderam o principal de Nara. Ela é a voz do Brasil insurgente, de vanguarda, que ao levantar um braço levantava o coração do país. No especial inclusive quiseram tirar seu papel de musa, já que ela participava ativamente, fisicamente, dos shows e de tudo o mais. Musa sim, inspiradora, persona que se colocou no alto, de onde se vê a planície.

De cara, esse sujeito que parece ser tão boa praça que é Nelso Motta assume o serviço sujo de dizer que Nara tinha uma voz pequenininha, mas que fez mais ‘barulho” do que todos os outros. Ou seja, não entendeu nada, apesar de se tentar se colocar no centro dos acontecimentos. Nara não tinha vozinha coisa nenhuma, nem fez barulho, quem faz barulho são essas porcarias que tomaram conta da audição do país. Tinha uma voz fora do circuito dos preconceitos. Sua voz não se opunha ao vozeirão nem se ligava aos sem-voz. Era voz fruto de uma articulação cultural poderosa, a do país gigante que transcendeu depois de cinco séculos de sofrimento e luta e dava o seu recado com a perfeição absoluta da melhor música do mundo.

Mas não aceitaram Nara, ficaram falando dos seus joelhos, do seu cabelo, da sua irmã, do seu marido, do seu rompimento com a Bossa Nova. Nara compôs a voz do país que não deveria se entregar e isso não a coloca entre os artistas de protesto. Ela não protestava, ela afirmava. Quem protestava contra ela eram os outros. Sua participação no show Opinião foi de inúmeras inaugurações. Reuniu João do Vale, do nordeste, com Zé Ketti, do morro. Expressou as denúncias da militância política. Sentou-se no palco para ajudar a enterrar o artificialismo teatral, inaugurando o informalismo ligado diretamente com a necessidade que tínhamos de mudar.

Foi a responsável por ter trazido Maria Betânia e Caetano Veloso da Bahia. Revelou Cartola. Buscou sempre artistas escondidos, o grande país oculto. Trouxe para a vitrine do Brasil, o Rio de Janeiro, o que tínhamos de mais forte e verdadeiro. Lá na fronteira onde nasci e me criei, toda vez que ela cantava Opinião eu ficava de pé e levantava um braço. Ela me tirava da mesmice. Nara sempre foi maior. O que tem a ver a adolescente do apartamento, a mãe de família, a portadora de uma doença terminal? Tudo isso é vida pessoal, não a pessoa.

Basta existir um gênio para alguém ir pesquisar quantas vezes ele cometeu deslizes, revelou sua precariedade. É uma espécie de vingança que a mediocridade pratica contra o gênio. “Ah, mas se ele defeca então é como nós e se for igual a nós, idiotas monumentais, então tudo está resolvido”. Assim, os imbecis podem conviver com sua própria grossura , enquanto a genialidade cada vez mais é enterrada.

Conheci Zé Keti no final dos anos 80, numa fase braba, em que ele não tinha um tostão e guardava dezenas de músicas maravilhosas, inéditas, na gaveta. Fui a uma feijoada no seu apartamento, a seu convite. Cantou para mim, o que é um privilégio sem tamanho. Vi de perto o gênio, que se foi pobre e esquecido e que agora recebe incensos variados por ter feito o que fez. Deveriam apoiá-lo na vida pessoal para que a pessoa não fosse prejudicada. Não deveriam tê-lo enterrado vivo. Jogaram Zé Keti contra o muro da sua vida pessoal enquanto guardavam seus grandes feitos para deglutição posterior.

Zé Keti e Nara Leão ficam: “Se não tem água, eu furo um poço, se não tem carne eu ponho um osso na sopa e deixo andar, deixo andar” disseram eles no show que marcou o país. Contra nosso acomodamento. A favor da mudança real, verdadeira. Quando mudarmos de fato, entenderemos Nara e sua grande voz.

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