2 de outubro de 2007

APAGÃO DIGITAL


Nei Duclós (*)

Desde o tiro n´água que foi o bug do milênio (aquele pânico de o universo digital zerar completamente com a chegada do ano 2000) houve uma desmoralização desse tipo de ameaça contra a tecnologia. Mas é bom lembrar que moramos numa ilha, onde a explosão de um liquinho na ponte é capaz de nos deixar à mercê da natureza por alguns dias. O que nos liga ao mundo está por um fio e quando a tragédia se impõe, quase ninguém sabe o que fazer.

No caso do famoso apagão de 2003, tivemos a sorte de contar com aqueles veteranos profissionais da eletricidade que gostam de trabalhar no potencial, ou seja, na rede em plena carga. Correndo o risco de virarem carvão, eles estenderam uma linha alternativa e foi assim que saímos da idade da pedra e voltamos aos insumos fundamentais como água, gasolina, banco, supermercado.

Como tem acontecido vários mini-apagões aqui no norte da ilha, fico de coração na mão, temendo a repetição daqueles momentos terríveis, em que realmente estivemos ilhados. A mitologia pagã de viver num pedacinho de terra perdido no mar tornou-se o pior dos pesadelos. Para complicar, soprava o vento sul e pelo rádio movido a pilha acompanhávamos os insucessos dos bravos rapazes elétricos, que lutavam contra a tempestade enquanto o impasse se mantinha intacto.

Para que lembrar dessas coisas, se a temporada se aproxima? Pelo que vi em feriado e fins de semana, este vai ser um verão de rachar. O sol ardido, ermo de ozônio ou de qualquer outra camada protetora que foi devorada irremediavelmente, cai sobre os turistas ainda atarantados pelo inverno, que aqui despencam em busca de alguns sonhos mínimos, como acordar com alegria num ambiente onde a natureza dá as cartas. Mas pressinto o óbvio: excesso de automóveis, areia superlotada e algumas armadilhas típicas, como um dia abafado recebendo brisa venenosa gelada pelos flancos.

Tenho tentado em vão convencer os adventícios que a ilha não é janeirão o ano todo. Quando confessamos que moramos aqui, exclamam: “Quanto privilégio!” Eles não sabem o que é ficar sem ver o e-mail por dias e dias, não conseguir atualizar o blog, não poder enviar o texto providencial que ajudará a pagar as contas no fim do mês. Mas para quem fica a maior parte de um feriadão parado na Imigrantes, o que vier é lucro quando chegam por estas bandas.

Não ouso mais dizer como as coisas funcionam no lugar que escolhi para morar. Estou recolhido às orações, pois um novo apagão seria um desastre completo. Fico imaginando as proporções de uma catástrofe em que todos os computadores pifassem e um gigantesco isolamento se abatesse sobre nossas vidas. Teríamos como companhia apenas os bons e velhos livros.

Poderíamos ler do amanhecer até o crepúsculo. Voltaríamos a ser pescadores e coletores. Abateríamos pombos (dizem que as gaivotas são indigeríveis). Seríamos como os antigos habitantes deste lugar de pedras empilhadas. Talvez até esquecêssemos o resto do mundo e nos concentraríamos em atividades erradicadas por aqui, como a lavoura, a conversa ao redor do fogo e o transporte marítimo.

Quando a luz voltasse iluminando as telas, estaríamos em outra realidade. Quem viesse com essa conversa de site, e-mail ou blog seria expulso a flechadas.
RETORNO - (*) 1.Crônica publicada nesta terça-feira, dia 2 de outubro de 2007, no caderno Variedades do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: Caboclo, de Debret. 3. Estive no fim-de-semana em Porto Alegre, onde fiz um recital de poemas no Portopoesia e participei de uma conversa com Claudio Levitan na livraria Roma. A viagem foi uma maravilha e aos poucos vou desovando as experiências, impressões e tesouros dessa rápida estadia em que reencontrei amigos e fiz novas amizades.

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