30 de abril de 2005

A SOCIEDADE DOS BRASILEIROS MORTOS




Afora o massacre nacional (45 mil assassinatos/ano, 50 mil vítimas fatais de trânsito/ano, crescimento negativo da população masculina e 18 a 24 anos devido aos homicídios) temos, dentro de cada um de nós, um brasileiro morto. Para quem é antigo, ele é visível a olho nu. Proteína na primeira infância, estudo puxado por quase duas décadas, família estável, formação religiosa e cívica predominam nos que nasceram antes de 1964, incluindo aí as classes menos favorecidas economicamente, já que o emprego público existia em rede, havia estabilidade no trabalho e o país não devia os tubos, ou seja, estava liberado para crescer, portanto sempre havia algum, apesar da escassez. Havia miséria, havia pobreza, mas nada comparável ao que temos hoje. Para quem nasceu depois de 64, o brasileiro morto é virtual, potencial ou simplesmente uma presença incômoda. Duzentas pessoas presas de uma só vez na fronteira do México com os Estados Unidos: se isso não é fuga em massa da condição de ser brasileiro, não sei o que é.

VIAGEM - Manter um brasileiro morto dentro de si dá trabalho. Eu estava na linha direta do ônibus ante-ontem, que funciona assim: você fica na fila do terminal e esperar encostar o verdão (oposto ao amarelinho, executivo). Consegue um lugar sentado, mas sempre tem gente em pé, pois há pouco veículo para tanta demanda. Eu espero pacientemente a minha vez. Consigo o lugar. Chega a família despencando de filhos. Penso: sobrará para mim. Ninguém arreda do lugar, claro, pois se quiser sentar, que espere na fila, lá fora. A viagem transcorre com a gurizada ao lado de mim naquela energia própria da idade, enquanto os pais olham ao redor, pesarosos. De repente, o loirinho mais velho começa a passar mal. Senta nas escadas da porta e vomita. A mãe acode com um perigoso saco plástico. Há tumulto familiar. Ninguém se mexe. O grandalhão pesado, pré-64, levanta-se imediatamente, enquanto a juventude ao redor moita (vício nacional). Cedo o lugar para a mãe que coloca o filhão mal-passante no colo. O maridão nem sequer me olha. Para ele, eu tinha a obrigação de me levantar, talvez. Ou talvez seja o brasileiro morto que carrega dentro de si. Assim como os demais passageiros, ele moita total. Eu fazia parte da cena, estava sentado confortavelmente enquanto a família se desesperava de pé. Mas de repente o brasileiro ressuscita e dá um safanão. Passo o resto da viagem de pé. Que coisa chata ser civilizado! Como há injustiça nesse mundo.

CORRENTE - Olho ao redor. Todos mudos, mirando o vazio. Estão mortos e não sabem disso. Ninguém parte em direção ao Outro, ninguém recebe o Outro em sua morada. Guardamos o melhor de nós para nosso próprio usufruto, o que significa estar preso a uma pesada corrente de ignomínia. O país despenca e continuamos assim. Estamos exaustos do Mal que nos governa. Somos sobreviventes e não criaturas ruins. Nosso traseiro vive ao ar, por isso em qualquer oportunidades nos grudamos à cadeira. É difícil sentar a bunda no país. Não há bancos de praça, não há cadeiras suficientes nas empresas que cada vez mais diminuem os espaços para manter o lucro da sobrevivência. Caímos no chão quando chegamos em casa. Aí ligamos a TV e lá está o novo milionário, bem fornido, instalado na cadeira monárquica, gargalhando de nós e nos chamando de lerdos. Não somos comodistas, temos um país morto dentro de nós, é diferente. Guardamos algo insepulto, o brasileiro que desperta tanta desconfiança. Ele se levanta de vez em quando, na Copa do Mundo, ou quando há esperança de mudança política, quando recebemos um elogio. Mas o resto do tempo é esse clima de Paris-Texas, o filme do ermo total e da loucura, que Wim Wenders fez para nos assustar. Procuramos a pé pelo deserto o amor que fugiu de nós. Quando o encontramos, ele está corrompido. Somos esse blues que ecoa no mato ralo, no território explorado até o mais fundo poço. Carregamos um fardo no coração pesado. De vez em quando ele se mexe. É quando acordamos, com um grito, no meio da noite.

RETORNO - O Segundo Caderno da Zero Hora (Zero Hora é feminino, é a Zero Hora, porque Hora é feminino, assim como a Folha e a Tribuna) deste sábado sobre Érico Veríssimo está primoroso. Ler é saber. Luiz Antonio Assis Brasil, Sergio Faraco, Regina Zilbermann, Flavio Aguiar, Flavio Loureiro Chavez, Sandra Pasavento: escritores, historiadores, críticos se debruçam sobre nosso escritor maior com grandeza e sabedoria. Totalmente obrigatório. É o Brasil que nos desperta.

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