4 de abril de 2005

A DIALÉTICA EM JOÃO PAULO II (2)




A contradição entre o estadista e a santidade resolvem-se em João Paulo II de maneira polêmica. Os conservadores adoram colocá-lo como o homem que acabou com o comunismo, mas o comunismo não acabou, o que implodiu foi a ditadura soviética, implantada pelo stalinismo. Nesse trabalho o Papa teve sua contribuição, mas nenhuma análise séria pode colocar exclusivamente nos seus ombros uma tarefa que depende, como nos ensina a História, de inúmeras confluências. Mais importante que o Papa foi o próprio Gorbatchev, um estadista radicalmente inovador. Com Gorbatchev tivemos a primeira oportunidade real de um mundo transfigurado pela transformação coletiva. Mas os americanos colocaram tudo a perder e retrocederam aos tempos anteriores à guerra fria, intensificando o ódio entre nações e o domínio dos outros povos. Eles acharam que a História tinha acabado, com a vitória dos Estados Unidos. Sonharam com uma Pax Americana idêntica à imaginada pelo Terceiro Reich, que queria o domínio do nazismo por mil anos. Até hoje acham que vão conseguir.

CHANCE - Por um tempo, com Gorby e Woytila, tivemos a chance de sonhar com uma outra vida, mas essa oportunidade se foi. A História não brinca em serviço. Por colocar-se no miolo de todos os conflitos, e nele manter sua integridade e a força do que representava, João Paulo II atingiu a santidade. Tivemos sorte. Vimos como se comporta alguém para tornar-se um verdadeiro santo: o homem que interrompeu uma missa para ouvir o chamado dos fiéis de uma mesquita; que calçou tênis, que beijou o planeta, que ouviu o coro do Exército Vermelho, em plena ditadura soviética, cantar ave Maria; que veio ao Brasil falar de reforma agrária e de crianças assassinadas; que riu sinceramente dos palhaços que se apresentavam para ele; que chamou Alá de Deus; que falou em medo e coragem; que perdoou o assassino que atentou contra sua vida; que viu e foi visto por todos os habitantes da terra. O Papa sempre nos emocionou por ser o que sempre foi, mas principalmente porque vivemos numa época em que as pessoas admiráveis pertencem ao passado. Quem você admira hoje? Muito poucos. João Paulo II era uma das minhas predileções, não por eu ser católico desde o nascimento, já que sempre desgostei de Pio XII e achava o Paulo VI algo sem vida. Gosto sinceramente do cardeal Woytila. Ele se foi e é nosso privilégio invocá-lo em nossas orações, pedir que interceda diretamente ao Altíssimo para que tenhamos a mesma coragem de cumprir nosso destino.

EVENTOS - O Papa esvaziou São Paulo num dia de semana, quando veio para o Brasil, e só quem não foi vê-o fui eu, como sempre. Sem querer fazer comparações , fiz o mesmo quando Jânio Quadros visitou Uruguaiana e foi alvo daquela foto célebre dos pés virados; perdi a chance de ver essa cena ao vivo. Fujo de grandes eventos, talvez porque não acredito em História vista a olho nu. Uma exceção foi o grande comício das Diretas Já na Praça da Sé, isso porque o Mino Carta convocou toda a redação e eu não pude escapar. Mas morri de medo no caminho junto com a multidão, nas estreitas ruas do centro. Achei que ia ser esmagado na São Bento. Completamente perdido, me perguntava o que dizer daquele momento, o que poderia repassar para o repórter encarregado de cobrir o comício, que era o Alex Solnik. No meio da massa, eis que surge uma bandinha do interior, toda uniformizada. Fiel à minha tese de que precisamos retomar o Brasil do lugar onde foi interrompido (31 de março de 1964), achei que aquele era um sinal de que o país soberano se manifestava, com sua retreta, com seu coreto, com suas fardinhas vermelhas do povo uniformizado para a grande festa da democracia que voltava. Lembro que, repórter do que via e não do que deveria oficialmente ver, cheguei até a sugerir algo para Solnik, que limitou-se a ficar mudo com minha grande descoberta. Estava certo. O Brasil não estava voltando. Continuava imóvel, potro morto à beira da estrada.

RETORNO - Urariano Motta é sempre leitura obrigatória no La Insignia. Dois textos recentes reforçam essa certeza. Um, absolutamente hilário e revelador, é sobre a visita de Einstein ao Brasil; e o outro, Primeiro de abril, trágico, poético e com a indignação dos justos, sobre memórias e verdades em torno da ditadura de 64. Ler é viver.

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