17 de outubro de 2003

Diário da Fonte

LER O NARRADOR

A narrativa oral, dita ao redor do fogo, serve-se da profunda atenção dos ouvintes, assombrados pelo infinito da noite, pela presença do mistério das chamas, pelo sobressalto de ruídos incompreensíveis. Fantasmas e heróis assomam nessa situação, que já não mais existe. Resta, para nós, ler os narradores que ainda mantêm esse poder e que transmitem a sabedoria por meio do prazer da leitura. No jornalismo, o texto tosco e obsoleto, sem a força da narrativa, serve aos podres poderes da ditadura, afastando leitores e aprofundando a crise dos veículos.

PERIGOS - Quando Victor Hugo fez oitenta anos, o povo inteiro de Paris passou na frente da sua casa para atirar-lhe flores. Era o reconhecimento pela alegria de ler seus livros e o agradecimento de todos aqueles que saíram dessa experiência muito maiores e mais completos. Quando um romancista desses de araque que existem hoje publicam, por exemplo, um livro policial para engambelar a platéia, está desservindo a necessidade que temos de narradores de primeira linha, de textos com grandeza, que influam na produção de textos diários da imprensa. Se uma besta consegue algum sucesso – graças ao apoio extensivo da mídia, orientada por critérios fajutos – acaba frustrando os leitores que apostaram nele e tira espaço de quem poderia chegar ao público e não consegue, pois não há vagas num ambiente editorial saturado de mediocridades. O pior é que, sem a grandeza do texto, quando há algum debate de idéias – raramente um verdadeiro confronto – tudo fica contaminado pelo veneno da baixaria, já que ninguém está carregado do poder e da beleza que só o talento pode proporcionar. O resultado é a agressão e o silêncio, ou seja, a violência da argumentação seguida ou antecipada pela moita total, a exclusão do próximo. Nesse hiato, medra a direita com sua argumentação tosca, mas poderosa, que desmoraliza diariamente os direitos humanos, que privilegia a tautologia, a escatologia (nos dois sentidos), o deboche. Einstein disse que não sabia como seria a terceira guerra mundial, mas a quarta seria a machado. Depois do fiasco Lula, é óbvio que a direita chegará com tudo, escudada na traição da pseudo-esquerda e montada na miséria galopante do País. Está na pinta para acharem um magnífico candidato, que chame o País à “ordem”. Esse quadro é permitido por um veneno que é injetado em todos os momentos, graças à pobreza mental triunfante e à erradicação do talento.

MEDO - É impressionante o medo que existe em São Paulo em relação ao presidente Getúlio. Desculpem voltar ao tema, mas ontem Otavio Frias Filho profetizou a transformação do Lula numa espécie de “Vargas operário”. Quase tudo o que o PT faz ou vai fazer de errado é atribuído ao Getúlio. A demonização do gaúcho em São Paulo – que só é levado em consideração pela sua porção “alemã” ou “italiana” – é uma tragédia política, pois se até no Vietnã houve confraternização entre americanos e vietnamitas, nunca soube de um ato de confraternização de mútuo perdão pela guerra de 1932. Claro, dirão aqui, quem tem que pedir perdão é o lado de lá. Depois de uma guerra, só a anistia geral permite que se volte ao normal. Essa anistia não houve. Ainda estamos em guerra. Uma das soluções é nos conhecermos melhor, para erradicar essa mancha. Posso propor essa sintonia, pois sou da fronteira gaúcha, meu pai lutou em 1932, tenho três filhos paulistas (o maior, Daniel, nasceu no Espírito Santo, mas aqui foi criado) e moro em São Paulo desde 1976. Minha sugestão é ler os grandes narradores, não para extrair deles qualquer “verdade” histórica, mas só pela alegria da leitura e do conhecimento . Voto em São Paulo no Sérgio Buarque de Holanda, que como historiador escreve melhor do que muitos romancistas. E no Rio Grande do Sul no nosso Poeta Maior . Vamos pegar alguns trechos do assombroso livro de contos As Brasinas, editado em 2001 em Porto Alegre (editoraage@editoraage.com.br) de J. A. Pio de Almeida. Trata-se de uma obra-prima absolutamente desconhecida, que pode ser comparada ao que há de melhor do grande João Simões Lopes Neto (outro clássico).

ALÍVIO - Sobre um personagem inesquecível, Fausto Balastraca, Pio de Almeida conta como partiu para sempre: “Até o dia em que foi viver na casa branca dos ventos solitários...” Balastraca “era o alívio dos necessitados, a palavra vertida dos celestiais caminhos, cruzes espalhadas na testa, no coração, no vento que nasce e no vento que some – e misturas douradas de ervas colhidas no jujal, por entre as pedras do cerro, no banhadal provedor...” Pio de Almeida lança luzes sobre dois mistérios. Primeiro, o Homem-de-Preto, que é uma assombração, coisa que eu não sabia, mesmo sendo admirador do grande clássico de Paulo Ruschel e imortalizado por Os Gaudérios, Os Homens de Preto, música magnífica vestida pelo arranjo do genial José Gomes (ele está voltando, estou avisando, o maestro Zé Gomes está voltando...). Eu achava que eram campeadores vestidos de preto, mas não, são fantasmas que "grudam" nos tropeiros. Outro enigma é o fim dos índios charruas, que desafiavam “as tropas dos referidos reis, no alto de uma coxilha, armados de lanças de taquara e boleadeiras de pedras mouras”. O Poeta conta como foi o massacre daquele povo: “”Se dizendo amigo dos charruas, dito general inventou um churrasco na costa dum arroio que se chama Salsipuedes, convidou a indiada, distribuiu canha em guampas, e, na hora dos abraços, com um exército de mil homens caiu em cima daquela gente, matando o que não escapou”. O Poeta conta causos à beira do fogo: “Na madrugada funda, na hora da ronda, sem aviso, no veludo do coxilhame apagado, lá longe, aparecia o Fogo-Malo, irmão do Boitatá, alma vivente queimando...” Paz no campo e na cidade: o prazer de ler nos salva das heranças de ódios e nos treina para o abraço.

RETORNO – Julio César Monteiro Martins, homenageado aqui pela sua obra de escritor e professor de narrativa, além de editor da obrigatória revista virtual Sagarana (link ao lado), me envia mensagem: “Caro Nei, que belíssimo texto. Fiquei comovido com este teu reconhecimento. Muito obrigado! E vamos em frente...”

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