14 de outubro de 2003

A PRÁTICA DA ENTREVISTA


Escolher a fonte é tão importante quanto formular a pergunta certa. O perigo é transformar o ping-pong em debate e tentar manipular a resposta para realçar o brilho do entrevistador. Num exercício que tem, numa ponta, Fernando Faro com suas perguntas invisíveis, e no extremo oposto, Jô Soares, que costuma sobrepor-se aos seus convidados, a entrevista é a pedra angular do relacionamento com o Outro, o desafio maior de uma época de individualismos hegemônicos.

EMPATIA – Os entrevistadores que mais gosto de ver em ação chamam-se Paulo Markun e Roberto Dávila. O preparo dos dois é tão apurado que parece que eles estão sendo informais. O segredo, acredito, é que sentem-se completamente à vontade com seus interlocutores, dos quais destacam a carga de humanidade de cada um, chegam ao coração deles sem pressioná-los ou agredi-los, apenas pelo encanto da inteligência e a formulação elegante das perguntas. Muitas vezes, acho que o Roda Viva poderia dispensar alguns entrevistadores, quase sempre mal-humorados ou apenas com suas arrogâncias saindo pelo ladrão, e deixar que Markun faça todas perguntas. Ontem, com José Saramago, repetiu-se uma situação comum no Roda Viva, da TV Cultura: o entrevistado não agüentou o nível das perguntas e começou a rir nas entrelinhas. Quando falaram em leitura gozosa, ele desmanchou-se num riso abafado e respondeu brilhantemente, dizendo que a leitura pauta-se pelo desafio, pois procuramos ler aquilo que está além da nossa compreensão, para que possamos melhorar. É uma paulada nessa história de didatismo lúdico, que mais aborrece os estudantes do que os conquista para o conhecimento. Deixar a criança à sombra é melhor do que deixá-la ao sol, disse Saramago e explicou: se alguém está melancólico num canto, deixe, a tristeza também pode ser uma coisa boa, a pessoa está lá se transformando, pensando. Markun sempre consegue fazer uma bela pergunta no início (deveriam ter outras, que são raras ao longo do programa), que praticamente transmite ao telespectador o aspecto principal do entrevistado e amarra o diálogo para um nível alto, sem superficialismos. Mas o desdobramento da entrevista, com tantas “estrelas” despreparadas, acaba tornando tudo monótono. Lembro o Pièrre Levy que gargalhava sem querer (simplesmente escapava dele) com algumas perguntas, pois tinha entrevistador que desconhecia princípios básicos de metodologia. A falta de formação intelectual básica deixa muito entrevistador na mão. Conheço jornalista que nunca abriu um livro e acho que não existe uma só biblioteca em qualquer empresa de comunicação. Quando você não tem uma formação maior, não finja, fica feio mentir. O telespectador quer ver sinceridade e eficiência, não uma vitrine arranjada de pensatas.

EXIBICIONISMOS – Muitas perguntas costumam ser exposições, palestras, exibicionismo puro. Markun costuma intervir para lembrar o papel do entrevistador, já que o sujeito não para mais de pontificar em cima do pobre convidado. Em Jô Soares isso assume ares de tragédia. O que mais irrita é que ele sempre fez algo da especialidade da pessoa que está lá, mas, claro, de uma forma muitíssimo melhor. Mas dá para entender Jô escutando o depoimento de Gary Oldman numa desses programas de entrevistas. O camaleão maior do cinema disse que ninguém entendia como conseguira fingir tão bem quando tocava certa sinfonia de Beethoven no filme Amada Imortal. Ele replicou que realmente tocou a peça, pois por um tempo achou que poderia ser um virtuose e quase chegou lá. Quando decidiu também ser um boxeador (por um tempo, com algum sucesso), entre inúmeras outras profissões, descobriu que era apenas um ator. Acontece o mesmo com Jô: no fundo, ele mostra que pode desempenhar qualquer papel (especialmente o de “mais inteligente do Brasil”, como gostavam de dizer sobre ele). Jô é ótimo, mas trabalha com scripts, tem equipes escrevendo para ele no seu programa. O único problema é quando acredita que é o que convence ser.

MAKING OFF - A pior entrevista é a dos atores falando sobre seus “personagens”. A falsidade chegou ali e fez morada. A melhor é quando Roberto Dávila nos traz alguém escondido, mas fundamental. A grande entrevista dos jornalões podem ser trocadas pelas mini-entrevistas, sempre ótimas, de Elio Gaspari. A praga maior das entrevistas são as perguntas “como-é-que-você-se-sente” e “como-é-que-é-essa-coisa”. O “povo-fala” das televisões, fundado na obviedade, é pura perda de tempo. Se chove, a pergunta é “como é que é estar chovendo?”. Se faz frio, a pergunta é “muito frio?”. Isso tem sido duramente criticado, especialmente com o personagem do Tolerância Zero, mas não se conserta. As construções verbais, de um modo geral, são tristes na televisão. Ouvi e vi num dia de temporal alguém dizer, num desses noticiários assustadores do cair da tarde, que “São Paulo está noite”. Outra praga maior é interromper o entrevistado, não deixá-lo completar o pensamento. A compulsão da fala é o retrato da busca de notoriedade a qualquer preço e significa eliminar o Outro. O segredo da boa entrevista é querer saber realmente o que o Outro tem a dizer e não provocá-lo para assistir a vítima cair em armadilhas. A não ser que o entrevistado seja um pulha poderoso ou um ingênuo irritante que mereçam o que levam para casa. Mas a entrevista mais original é a do Fernando Faro, que corta todas as perguntas. Seu obrigatório Ensaio – a maior pesquisa musical de uma nação em todos os tempos –, encanta pelos silêncios entre as respostas: sabemos que Faro está lá, que se agiganta quando sai da reta para deixar seu convidado ficar com todas as honras. Isso é civilização brasileira, a cultura da Humanidade Gentil.


RETORNO - DOIS AMIGOS INTERNACIONAIS

1. A página 7 do Globo de hoje traz um artigo intitulado "A ONU no Iraque", do brilhante diplomata Flavio Hemold Macieira, que sempre me brinda com mensagens a partir dos lugares onde trabalha (no início, Irlanda e agora, Chile). Ler Flavio é um privilégio e sua análise lança luzes importantes sobre a área maior do conflito internacional.

2. O Repórter das Multidões, o globe-trotter Carlos Marcondes, que apaixonou-se por uma australiana e resolveu atravessar novamente a fronteira, me envia mensagens do Velho Mundo (sou da Era do Rádio): “Após uma aventura de amor na Europa de cinco meses, entre melhorar meus dois idiomas extras e brigas de cortar o coração com a Australiana, eu estarei voltando em breve. Passei por Portugal, Inglaterra, Barcelona (onde vivi 2 meses), depois Londres de novo,de onde lhe escrevo, sem falar na semana que passei na Itália.” E numa outra mensagem: “Grande senhor conhecedor dos segredos de inexploráveis Pirâmides!”, diz ele, o maior debochado vivo. “ Hoje em dia vivo na fria e cinzenta Londres!!!!O azul resolveu nascer para tentar dar toque de vida no sorriso sem graca da gente daqui!!!!!” Quando fui editor dele, proibi o frila Carlos Marcondes de aparecer na redação, pois atrapalhava o trabalho, já que as mulheres acreditam que ele é um galã (essa é a palavra, sou da Era do Cinema). Trata-se de um enganador, apesar de ser um grande jovem repórter.

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