20 de setembro de 2003

O PIANO DO FECHAMENTO

Fechamento bem feito é o diferencial entre um veículo de qualidade e um veículo amador. Numa pequena revista ou jornal, você pode ter a melhor matéria do mundo, mas se desconhecer as bases desse ofício, tudo vai parecer de segunda mão. E não se engane: você precisa ser um virtuose desde o momento em que carrega o instrumento para o palco.

NÃO REPITA INFORMAÇÃO – O fechamento, conjunto composto de títulos, linhas finas, olhos, legendas, intertítulos e chamadas, formam um “texto” à parte, que se alimenta da matéria, mas não repete suas frases. É comum na imprensa – hoje mesmo vi um exemplo – de colocar na legenda a mesma informação do título ou da linha fina. Na maioria das vezes o fechamento é a única coisa que o leitor vai prestar atenção, portanto não perca essa chance nem desperdice espaço. Crie cada elemento desse trabalho como se estivesse escrevendo uma reportagem ou burilando um texto final. A reportagem, se for boa, possui inúmeros itens que podem ser destacados. Você pode usar o título como “isca” de leitura para o lead, a linha fina para a legenda, a legenda para o corpo da matéria e assim por diante. São vasos comunicantes que merecem ser tratados com carinho, criatividade e eficiência, e isso dá trabalho. Fechar não significa livrar-se da última etapa da edição. Ao contrário, esse é o momento mais importante, em que as coisas ficam por um fio e tudo pode ir por água abaixo. E não se esqueça que o título da matéria principal devem ser dois: um na capa e outro no miolo do jornal ou revista. Não coloque o mesmo título dentro e fora. Crie. Uma vez fiquei uma madrugada inteira para conseguir um só título. E dois expedientes comerciais para achar uma abertura de texto.

LEGENDAS – A legenda tem suas manhas. Se a foto tiver dois personagens, o que está à esquerda é citado primeiro, e não o contrário. Uma foto não pode estar fora da página em que está o personagem citado: a legenda refere-se a algo no corpo da matéria que está ali naquele espaço que o leitor está vendo. Costuma-se colocar o nome do personagem acompanhado de dois pontos, seguindo-se uma frase entre aspas ou algo que se reporte ao que ele é ou disse. Esse é um esquema bem batido, que merece ser mexido um pouco. É tão lugar comum que se coloca dois pontos quando nem é necessário. “Fulano fez vestibular”, por exemplo, às vezes aparece como “Fulano: fez vestibular”, o que é um erro. Legenda serve para identificar a foto – e é por isso que eu digo para os fotógrafos que eles não vendem fotos, vendem imagens identificadas. Nenhuma foto portanto pode vir desacompanhada de legenda, a não ser que seja um ensaio e o personagem seja um só e estiver destacado no título ou nos outros elementos que apresentam a matéria. Minha melhor legenda foi a da vinda de Frank Sinatra pela primeira vez ao Brasil. Foi na IstoÉ. O empresário que conseguiu trazer a Voz fez tanto estardalhaço que não resisti: “O famoso Roberto Medina e seu contratado. Sinatra é o da direita”.

ARTE - Como sou do tempo do past-up, e o fechamento era feito na velha Olivetti, adquiri arduamente, junto a toda a minha geração, o traquejo do fechamento. Quando veio o computador, tornou-se uma brincadeira. Mas nos velhos tempos, quando tudo era feito na base do estilete e da cola, o corte precisava ser de maneira tal que não obrigasse a arte a enviar de novo a matéria para a composição. Conseguia desempenhar-me da tarefa razoavelmente e por isso eu era aclamado quando chegava no departamento de arte da revista Senhor, dos anos 80: Thaís Rebello e João Carlos Alvarenga, os premiados Thaís e Joca, mentiam me chamando de gênio, só porque eu economizava tempo e assim permitia que eles fossem para casa mais cedo. Trabalhei com grandes editores de arte, como Reginaldo Fortuna – que enxergava o desvio de um milímetro num fio – e Luiz Carlos Moraes, que estava na equipe original de IstoÉ Gente (da qual não participei) e hoje está na Fiesp. Moraes sabe como ninguém criar um projeto visual perfeito sem fazer nenhuma pose. Trabalhar com Moraes é um privilégio para poucos fechadores.


Perfil – Múcio Borges da Fonseca

O BRASILEIRO VINDO DE LONGE - O perfil deste sábado é sobre um jornalista maravilhoso que ocupa um lugar de destaque na história da imprensa brasileira, apesar de ser pouco conhecido atualmente. Ele me escancarou as portas da Editora Três e tinha qualidades humanas e profissionais admiráveis. É uma das pessoas que me provocam saudade quando lembro as longas décadas que passei nas redações.

Conheci Múcio já safenado, caminhando muito para evitar novos transtornos do coração. Batia as palmas das mãos soprando entre elas:
- Vamos fechar, vamos fechar.
Tinha trabalhado na Última Hora do Recife e seu ídolo era Josimar Melo, tema de seu livro “Em suas veias corria tinta de jornal”. Múcio era de Bom Jardim, Pernambuco e me deu apoio quando eu mais precisava. Levou-me para o Rodeio para comemorar minha volta a São Paulo em 1981 e combinar minha contratação para a Senhor quinzenal. Lá encontrei Tarso de Castro, que estava inconformado por terem fechado sua revista Careta, outra obra feita a quatro mãos com Fortuna.
Múcio tocou a Senhor quando esta não tinha nenhum prestígio. Era o início de um veículo com o mesmo nome da revista lendária dos anos 50 e que, mais tarde, nas mãos de Mino Carta, transformou-se no mais importante veículo dos anos 80. Trabalhei com ele também como editor de texto da Brasil 21, belo projeto enterrado antes do tempo.
Quando recebeu a carta da diretoria anunciando que a revista tinha sido fechada no terceiro número, proferiu uma das frases mais humanas que conheço:
- Fracassamos miseravelmente, disse ele e o olho bom de Bom Jardim ficou cheio de água.
Como continuei trabalhando na Três, fiquei sabendo que a revista recebia cartas um ano depois de ter sido fechada. Brasil 21 é a revista que deveria voltar.
Múcio era humano demais para um ambiente excessivamente cruel. Tinha dúvidas sobre tudo e nisso nos aproximávamos. Um dia, indiquei meu amigo Eduardo San Martin ( poeta, jornalista e autor de livros memoráveis sobre pirataria, atualmente morando em Nova York), para trabalhar com ele. Durante anos, ele dizia:
- Muito boa sua indicação.
Foi o acaso que me aproximou de Múcio e de Nestor Fedrizzi, duas pessoas chave da Última Hora, jornal que fez história e foi destruído pela ditadura. Fedrizzi (que implantou o Jornal de Santa Catarina, em Blumenau) fez a Ultima Hora de Porto Alegre, onde também trabalhou Tarso de Castro. Múcio militou anos no jornalismo e foi um dos donos da Unipress, que ajudou a implantar qualidade nos veículos empresariais brasileiros.

RETORNO – Voltou o sol e decidi retomar as caminhadas, interrompidas durante a devastadora friaca das últimas semanas. Chegou a hora de os paulistas dizerem duas coisas. Primeiro, convencer-se que “São Paulo nunca faz frio”. E segundo, que eu não deveria reclamar tanto do frio pois, sendo gaúcho, deveria estar “acostumado”. É perda de tempo lembrar aos engraçadinhos que a temperatura do corpo humano é de 36 graus e que até esquimó usa pele de urso para enfrentar a neve, pois nada “acostuma” nossa natureza ao clima polar.

2 comentários:

  1. Múcio foi meu avô. Infelizmente não cheguei a conhecer, no entanto já ouvi tantas histórias que é como se eu tivesse conhecido. Grande homem que ainda deixa muita saudade.

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  2. Pessoa muito importante para mim. Salvou-me mais de um vez. Generosidade e competência.

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