16 de setembro de 2003

O ESQUELETO IMANTADO

Texto, para ficar em pé, precisa de espinha dorsal com poder de atrair naturalmente todas as informações. O núcleo dessa criatura difícil de domar deve possuir força suficiente para encaixar as peças sem susto e assim justificar a atenção do leitor, levando-o pela mão, sem tropeços, da primeira à última linha.

ESTÁ DIFÍCIL – Hoje você suja as mãos e pouco encontra de realmente bom para ler nos jornalões, e muito menos nas revistas. No fim de semana a tarefa é menos complicada, graças ao Mais!, da Folha, ao caderno de Cultura do Estadão e à Carta Capital, que sempre oferecem leitura de qualidade, que é o que procuramos na imprensa. “Não leio jornais, leio jornalistas” era a citação do Paulo Francis sempre que abordava o assunto. A pouca oferta nos obriga a insistir: um autor como o Drauzio Varella, por exemplo, quando acerta lava a alma, como é o caso do texto em que narra o encontro com velha figura do Carandiru e as peripécias conjugais na periferia. Outro autor irregular, mais para o acerto do que para o erro, é Mangabeira Unger, que publica na página dois às terças-feiras (hoje), na Folha. Gosto quase sempre do Walter Salles Jr., Gilberto Vasconcellos e Jânio de Freitas. E toda vida, claro, do Mino Carta (que escreve magistralmente o que pensamos, ou o que deveríamos pensar). Muitos autores não possuem talento, mas são agraciados com espaços gigantescos e injustificáveis. Não cito nomes pois cada leitor tem seus favoritos e suas implicâncias. O lamentável é que leitura boa fica reservada aos colunistas, já que o reportariado está sob o jugo dos manuais e proibidos de desenvolverem um estilo próprio. Costumo dizer que para isso servem os manuais: padronizar e sufocar o talento do repórter e assim projetar os holofotes nos colunistas e seus “diferenciais”. O que irrita são alguns cronistas, paga-paus de amigos recorrentes, eternamente citados em seus cíclicos textos, como a justificar a superficialidade que a crônica deve assumir na divisão de poderes da leitura.

ABERTURA, MIOLO E PÉ – Chamo de lead, impropriamente, o início dos textos. Lead é invenção americana que precisa responder perguntas básicas. É eficiente para evitar papo furado e treinar jornalistas iniciantes. Mas prefiro falar em abertura de texto, que não está subjugada aos ditames do lead. Seu papel é fisgar o leitor e jogá-lo para esse território improvável e pouco visitado, o segundo parágrafo. Houve tempo em que se fazia piada dizendo que um texto iniciava com o “tudo começou”, continuava com “na verdade”, no terceiro parágrafo usava-se “por outro lado”, depois para sugerir seriedade apelava-se para um “a rigor” e lavava-se as mãos no fecho com o obrigatório “resta saber”. Mas hoje esse tipo de coisa nem serve para piada, já que é trágico e assombrou a imprensa por muitos anos (mas dessas muletas ninguém está livre). É por isso que criei a figura do esqueleto imantado, em que o jornalista descobre o poder central do seu texto e usa-o como estrutura viva. O segredo é manter a objetividade do lead sem curvar-se a ele. Depois que você encontra a abertura, se der branco, faça como Hemmingway no livro “Paris é uma festa”: coloque a frase mais verdadeira que você conhece. Mesmo que ela seja eliminada depois, já que pode não fazer parte da sua matéria, use-a como instrumento de poder. O fim da reportagem não pode ser um apêndice dispensável: ele é tão importante quanto a abertura. Se tiver que cortar, corte no miolo: algo costuma soar mal, ou seja, está errado. Escreva de ouvido. Texto é música e o esqueleto imantado é a sua partitura.

MESTRE JAPIASSU - Hoje é o lançamento do livro do Moacir Japiassu, “Concerto Para Paixão e Desatino - Romance de Uma Revolução Brasileira", pelo selo Francis da W11 (brava editora do meu amigo Wagner Carelli em sociedade com a Sonia Nolasco). Será no Shopping Villa-Lobos, na Livraria Cultura, a partir das 18h30min. Japi há décadas desenvolve missão cívica no meio jornalístico, pois com humor e talento aponta os escorregões da imprensa, sem o tom ranzinza dos professores, mas com o toque elegante dos escritores. Mestre Japi é imprescindível na nossa profissão, e por justiça ocupa agora lugar de destaque na literatura. Seu livro é ambientado na sua Paraíba: “ Trata-se de um romance. É ficção, ficção que tem como cenário, como ´pano de fundo`, os acontecimentos de 1930”, diz Japiassu. A Revolução de 30, como a Guerra da Independência, ainda desafiam os historiadores e possuem acervo riquíssimo para a literatura. Já que falamos hoje em texto, é comparecendo nesse lançamento que poderemos homenagear o texto brasileiro de qualidade.

RETORNO – Altamirando Jonas é biógrafo da desimportância. Presta atenção nos detalhes mais obscuros dos seus biografados, todos eles sem nenhum lugar garantido na História. É aposentado precoce (conseguiu isso sabe-se lá como) e dedica-se a futucar a vida alheia. Encanou na minha. E o pior é que jamais se apresenta, sempre vem via texto. Como é muito chato, confirmo as suas descobertas. É a única forma de me livrar da sua presença por uns tempos.

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