20 de dezembro de 2014

BARDOT REINVENTA O CINEMA



Nei Duclós



Isso só funciona no cinema, diz Christian Marquand para Jean-Louis Trintignant na cena de E Deus Criou a Mulher (Roger Vadim, 1956) em que o marido desesperado tenta arrombar uma porta com tiros. O filme está fora portanto do “cinema”, que era nessa época do auge de Hollywood a apropriação americana de uma invenção francesa. Ao invés de o lugar definido pela indústria do espetáculo, em que aparece normalmente como bibelô ou entretenimento, a mulher irrompe numa demolidora  Brigitte Bardot aos 22 anos.

No litoral francês onde tudo está sob custódia de uma falsa moral, representada pelos estaleiros focados na produção e no turismo, em que a mãe castradora tenta afastar os dois filhos do “pecado” brandindo com os bons costumes e os negócios da família, a mulher é a força da natureza que não estava nos planos do esquema social. Ela sofre esse cerco ao tentar dedicar sua sexualidade a alguém que ama, mas é traída pelo oportunismo de jovens e velhos, como o empresário Curd Jurgens, um salafrário que tenta de todas as formas manter a garota na aldeia e impedir que ela volte ao orfanato (a personagem “criança” tinha menos de 21 anos).

As senhoras de preto e assexuadas se sentem aliviadas quando sabem que a pecadora irá embora, mas tudo vai por água abaixo quando o filho mais novo casa com ela. Mas aquela criatura ninguém doma, nem ela mesma,. que se entrega à sua confusão provocada pela exclusão social, o cinismo de quem a confina na imagem da prostituição e no ócio a que é submetida por encarnar a tentação. Vadim se esmera em mostrar Bardot com todos seus atributos, transformando-a no exemplo máximo da sensualidade dentro e fora da tela.

Seu filme transgride as molduras da época ao mostrar a briga de marmanjos sem o enfeite coreográfico dos filmes de sucesso. O marido apanha de verdade, os irmãos se machucam em cena. Tudo soa uma autenticidade rústica, reforçada pela simplicidade da narrativa, quase amadorística e que pode ser considerada não convincente. Talvez seja proposital, mas imagino que tem a ver com as limitações do cineasta, que assim mesmo achou seu caminho próprio, fora da vizinhança (a nouvelle vague de um lado e o espetáculo das grandes produções do outro).É, apesar de tudo, um cinema de autor. Não como vemos os grandes mestres, mas como um artista com domínio sobre seu ofício.

Sua Bardot é inesquecível e moldou o nosso tempo. Toda a sensualidade transgressora da mulher que se apaixona e não consegue sufocar seus instintos esta representada naquela ex-adolescente que partiu a coração da marmanjada. Enquanto ela dança com as pernas na música da negritude, os homens de terno a encaram, amarrados na inveja e na imobilidade. Os homens são desmascarados em sua falta de escrúpulos e covardia. A Bardot é atribuída a vocação da inocência perdida. É Deus que intervém no sistema podre do dinheiro e da sacanagem comercial. Coloca na roda a mulher que tem poder de se comportar como quer, apesar de sofrer as consequências dessa atitude.

Tudo isso é cinema. Um cinema que decidiu achar a mulher que se revelava naquela época e que assumia a libertação feminina ainda no início, quando havia apenas desconforto diant de tantos desafios. Mas o melhor estava para vir depois.


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