26 de dezembro de 2014

A INSPIRAÇÃO É O PRÓPRIO CINEMA



Nei Duclós

Revejo no Netflix, carregado no celular, mais um Spielberg, Always, em que as lições do cinema são repassadas por uma deslumbrante, veterana e vestida de branco Audrey Hepburn. Ela explica para Richard Dreyfuss como os espírito inspiram os vocacionados para seus ofícios. No caso do filme é um piloto, mas Steve está falando dos cineastas, dele mesmo. No fundo, só conhecemos a nós mesmos.O cinema é uma chance de reconhecer o Outro. Ou pelo menos assumirmos o papel do Outro para que as vidas alheias se tornem explícitas, claras, compreensíveis. Só assim existirá essa figura bíblica dos mandamentos, o Próximo.

Em todos os filmes em que mete a mão como diretor, produtor ou simplesmente gestor, Steve explica essa herança intensificada no presente. Em De Volta para o Futuro, a grande aventura em três episódios no qual ele é o idealizador, notamos que não importa o gênero de filme, os atores ou as personagens. O que pega é a narrativa. O baixinho Michael J. Fox encarna Clint Eastwood e seria hilário não fosse um filme que trabalha as heranças do cinema em camadas que se superpõem e são autoreferentes. As situações nos três episódios são sempre as mesmas: o conflito, a fuga, a viagem, o despertar do que parece um pesadelo etc. Mas funciona o tempo todo,com os mesmos personagens de épocas diferentes confrontando-se consigo mesmo, numa sucessão meteórica de filmes sobre filmes.

Em Always, quando o piloto esta morto, ele vê na floresta queimada a figura de um grande veado. É a referência completa a Bambi, de Disney, que perde a mãe num incêndio da floresta. A orfandade que enfrenta a segunda chance precisa de inspiração e no cinema ela encontra no próprio cinema.

E já que falei em Netflix, vi também no celular o filme de 2008 sobre Buck Howard, o mentalista fictício interpretado pelo John Malkovitch. Não gosto desse ator, overdose de ego e lábios túmidos de vaidade. Mas neste filme ele está sensacional. É sobre alguém em fim de carreira que só mereceria desprezo, que teve sua época de ouro em programas famosos de TV e hoje se arrasta por pequenas cidades do interior com seu show de magias mentais. Mas o cinema o recolhe do fundo desse poço e o veste de uma dignidade que parecia não existir. É uma das funções do cinema americano, que age estrategicamente em favor da nação  sempre inclui todos os personagens num só conceito de país. Pelo menos nos filmes,como vemos na policial porto-riquenha companheira de Clint Eatwood em suas aventuras  de magnum 44. Seja migrante ou não.

É um exemplo a er seguido. Nos trabalhamos só com a exclusão, celebramos a marginalidade, e jogamos no lixo as outras classes sociais, tidas sempre como curruptas e indignas, ao contrário dos argentinos, que sabem que a classe média é um dos pilares nacionais. Mas somos assim, suicidas. Órfãos que não buscam a linhagem, a herança que nossos antecessores nos deixaram.

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