27 de outubro de 2014

O PLAY-GROUND DA FÚRIA



Nei Duclós

É em torno das representações do mundo infantil que gira o drama de Falling Down (Um dia de fúria), o clássico de Joel Schumacher de 1993, sobre o americano desempregado que surta ao tentar participar do aniversário da filha, fruto de um casamento desfeito que parecia perfeito. Para isso ele cruza a cidade cercada de inúmeras fronteiras pulando cercas, como fazem as crianças, e destruindo tudo o que encontra, como os moleques indisciplinados e soltos nas ruas. Ele compra o globo transparente de presente para a filha, atravessa a pé bairros pichados pelo infantilismo transgressor dos jovens migrantes, usa armas que a meninada pobre sabe como funciona graças à TV, e por isso é confundido com herói de filme de ação. O desfecho é exatamente essa evidência, quando ele saca um revólver de plástico no duelo final, que trava diante de um policial que perdeu a filha de dois anos porque a esposa não assumia seu lado adulto e abandonara o rebento em função das obsessões de um casamento rotineiro. O duelo é travado em meio à multidão de crianças e seus pais que se divertem com inúmeras atrações de um parque de diversões.


“Você se rebelou porque mentiram para você?” pergunta o policial Robert Duvall para o surtado Michael Douglas (ambos em performances antológicas). “Mas eles mentem até para os peixes. Isso não é motivo para você sair atirando em todo mundo”. Os adultos mentem para as crianças. Tanto, que a viúva do alucinado que tentou sequestrar a própria filha é aconselhada a não dizer a verdade para a criança. “Hoje é aniversário dela, deixe para contar amanhã”, diz o policial. Qual a sequela dessa mentira para o resto da vida da menina? Divertiu-se enquanto o pai baleado era recolhido do mar, boiando? O filme ultrapassa sua moldura e se transforma numa referência da fase culminante da crise econômica mundial, quando tudo vai por água abaixo, principalmente a identidade das nações reféns de um sistema financeiro ditatorial.

O policial Duvall está no seu último dia de trabalho, pois fora pressionado pela mulher a deixar de exercer a profissão que adora. Saiu das ruas e assumiu uma função burocrática. Por isso é criticado pelos colegas e o chefe, que o acha covarde. Mas ele é o único que mantém a lucidez numa conturbada vivência policial que se guia pelo preconceito étnico e as ideias prontas sobre os crimes. Para solucionar o drama, o policial duro, honesto e quase aposentado raciocina lendo o mapa da cidade palmilhada pelo criminoso. E mata a charada.

O policial é o único representante adulto de um mundo tomado pelo individualismo e a doença do infantilismo tardio. As pessoas querem viver num mundo ideal quando tudo já descambou. Querem se manter lúcidos agarrados a ideias antigas. Estão cegos ou pela rotina ou pelo ódio. É fácil, nesse ambiente injusto, que o individuo assuma o papel de justiceiro e vingador e pratique o que mais combate. Eu sou então o bad guy? se pergunta ele, abismado. Fez tudo certo, ajudou a construir mísseis para defender a pátria, foi pai exemplar, sustentou a família. O que deu errado?

O mundo deu uma volta no parafuso e desmascarou o álibi da civilização perfeita. Estávamos afundados na barbárie enquanto a industria do espetáculo nos enchia da falsa inocência, de comportamentos irresponsáveis, brinquedinhos e distrações. O ódio medra nesse play ground sinistro. Quem entra em parafuso é o retrato da ingenuidade perigosa e obsessiva: camisa branca apertada no colarinho, gravata, óculos, cabelo cadete, olhar duro. Ele se sente apoiado pela ira justa, pois vê seu país tomado pelos estrangeiros e pelo privilégio de quem jamais defendeu a América (velhos milionários jogadores de golfe, cirurgiões plásticos morando em mansões, bandidinhos pé de chinelo tacando o terror na cidade).

Mas quando a ira justa ultrapassa o limite (como a lei ou a ética) torna-se indigna. A indignação então vira ódio, caso de polícia. Quem contrai a doença política do ódio sente-se traído e vai à forra. O problema é que a violência, no cercadinho do individualismo, é como uma perigosa doença infantil. Vimos isso todos os dias nas ruas das grandes cidades, nos tiroteios contra estudantes, nas balas perdidas, na transgressão pura e simples. Estamos condenados e só o amadurecimento poderá apontar alguma saída.

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