20 de janeiro de 2013

ZONAS ESCURAS DA CIA


 Ramzi Kassem  (*)



"Nos Estados Unidos,  a controvérsia provocada pelo filme “Zero Dark Thirty “(no Brasil: A Hora Mais Escura),  foi tão equivocada quanto o próprio filme.  Grande parte do debate centrou-se na questão da diretora Kathryn Bigelow dar aos espectadores a falsa impressão de que a tortura levou à morte de Osama bin Laden. Que tanto os meios utilizados e os fins alcançados nessa equação são ilegais e repugnante ficou esquecido no debate. A tortura e execuções extrajudiciais são anátema para a sociedade civilizada, independentemente da sua possível eficácia ou conveniência. Mais importante, tanto o filme quanto a polêmica que despertou trata a tortura em prisões secretas da CIA, como se fosse algo do passado, mascarando a realidade de uma prática permanente.

Na primeira  parte do filme, uma demonstração bem real de tortura explícita, um show imoral e pornô da crueldade medieval praticada nas sedes da CIA e em suas várias prisões afiliadas. Estrapada,  afogamento, abuso sexual, espancamentos, posições de stress, música altíssima, encerrar  pessoas dentro de caixas,  privação do sono, mas também - e isso não foi  suficientemente reconhecido como a tortura - ameaças para enviar os prisioneiros para países onde eles teriam de enfrentar novos abusos (no filme, Israel). Meus clientes em Guantánamo e Bagram sobreviveram a tal selvageria nas mãos de seus captores americanos. Eu posso atestar que as marcas deixadas em seus corpos e mentes são reais e duradouras. Mas o filme não se importa nem um pingo com essas conseqüências, ao contrário, preocupa-se em mostrar os sentimentos dos torturadores em relação aos  crimes que cometeram.

A tortura se tornou aceitável?

O filme faz alusão a um dos primeiros atos do presidente Obama no cargo: ordenar o fechamento das " prisões secretas” da CIA  e proibir a agência de fazer  novas ‘prisões operacionais’. Passou despercebido, que Obama , no entanto, permite que a CIA mantenha prisões secretas por  "curto prazo”,  de forma transitória. Em um comunicado no mês passado em relação as detenções feitas pela  CIA, a senadora Dianne Feinstein, lamentou que "erros terríveis" tenham sido cometidos  nas  prisões clandestinas , em  locais sombrios, "de longo prazo".  Esse artifício verbal  é para que a CIA mantenha a possibilidade legal  de prender e reter prisioneiros sem intermediação, diretamente,  ainda que seja por curto prazo.

E,  limitou as técnicas de interrogatório permitidas , admitindo somente as listadas no Manual de Campo do Exército. Porém esse Manuel  foi modificado em 2006, autorizando algumas técnicas como: as posições de estresse, privação de sono e isolamento - métodos equivalentes a tortura que são representadas em
Zero Dark Thirty. A noção de que a CIA não tortura prisioneiros, então, só pode resultar da ignorância real ou fingida.

Continua igualmente, é claro, a  contínua utilização  de  regimes estrangeiros para fazer o trabalho  sujo pelos Estados Unidos, prendendo e  interrogando suspeitos indicados pelo governo norte-americano sem processo,  e, muitas vezes abusando de prisioneiros (com a participação) de agentes dos EUA.

Verdadeiramente sofisticada é a manipulação da percepçãoo que o filme faz. Mesmo que não seja intencional, por exemplo, vemos sua heroína paradoxalmente superar a subordinação em uma profissão dominada por homens, na medida em que participa da subjugação de prisioneiros muçulmanos,  terminando por abraçar plenamente seu papel sádico. Contando com um arsenal de ferramentas para tortura que lembram o básico de qualquer ditadura (não obstante a presunção obscena dos americanos que consideram a nossa uma forma de tortura mais sofisticada e controlada), vemos como os agentes dos EUA extraiem informações de uma série de prisioneiros. É este o retrato que o Comitê de Inteligência do Senado condenou como "grosseiramente impreciso", com base na análise de mais de seis milhões de páginas de documentos classificados.

O ato final da “
Zero Dark Thirty  descreve o ataque de Abbottabad. É o mais próximo do que aconteceu que o filme consegue chegar. Fica bem claro que  o ataque foi uma "operação de matar", uma execução ordenada, apesar dos protestos tépidos do governo de que comandos americanos estavam preparados para capturar o Bin Laden desarmado, sendo que ele próprio estva pronto para render-se.

Zero Dark Thirty   aspira a ser uma exposição imparcial dos fatos como eles se desenrolou, mas é enganador em seus próprios termos. O filme começa com a afirmação de que é "baseado em relatos de primeira mão de eventos reais".  Mas porque a sua apresentação é informado por e contada a partir da perspectiva dos agentes americanos envolvidos na busca por Bin Laden, não é surpreendente que esses cineastas foram "cooptados" por funcionários do governo que lhe imposeram uma agenda para justificar seus crimes. Como tal, o filme não pode ser neutro, não mais do que reportagem de guerra que pretende apresentar, pode passar como jornalismo verdadeiramente independentes. No final, Bigelow é um cineasta cooptada, a partir desta posição, o seu trabalho não podem oferecer uma perspectiva crítica, com os questionamentos próprios  que definem  a arte.

Infelizmente, os erros e preconceitos do filme chamaram a atenção nacional somente para as perguntas:  a tortura "funcionou" ? e se o filme tem  o “direito" de mostrar a tortura?  Não houve responsabilização pelos crimes mostrados que continuam a acontecer constantemente. Longe de destacar que esta triste  verdade,
Zero Dark Thirty   glamouriza os torturadores. A este respeito, os cineastas são cúmplices reforçando a impunidade que protege os culpados.

Alguns chamariam de propaganda, e muitos dos admiradores do filme, assim como seus críticos,  têm caído nesta armadilha."


RETORNO - (*) Ramzi Kassem é professor na Universidade da Cidade de Nova York, Faculdade de Direito. Com seus alunos, o professor Kassem representa prisioneiros de várias nacionalidades atualmente ou anteriormente, mantidos em instalações americanas em Guantánamo, Cuba, e na Base Aérea de Bagram, no Afeganistão, que ficaram conhecidos como os  “locais negros" de detenção da CIA, que existem ao redor do o mundo. A tradução do texto é de Ida Duclós.