11 de janeiro de 2013

SURDINA



Nei Duclós

Achei que era o dia, mas eram teus lábios, que me beijaram em surdina e amorteceram a queda no chão duro.

Enquanto alardeavas a felicidade de ter se livrado do amor, foste te liquefazendo até virar um lago que veio bater todas as ondas nas minhas margens.

Não sinta remorso pela tua decisão. Cuide da vocação que o amor dirá sim.

As coisas muito nítidas nos libertam da lógica. O poema enxerga por baixo da porta.

Por mais que procures outros lances, sempre me achas. É inútil pensar que me perdeste.

Pode te dispersar entre tantos. Eu fico onde estou, a pampa.

Tua demanda filosofante ganha fórum na auto-ajuda. Na poesia, é como ir á praia. Parece brincadeira, mas Deus está perto.

Comecei um verso, não sei onde termina. Talvez em teu coração, que me ilumina.

Me escreva para colocar seu ciúme em dia.

Nova, sentiu raiva crescente até ficar cheia. Depois, minguou.

Abuso de confiança quando há sentimento não é apenas traição, é crime hediondo.

Não insista. Já falei mil vezes que não me amas.

Desconfie que o verbo que te faz a corte pode ser sincero, arisca.

Ame a palavra que te celebra. Não tira pedaço, sem graça.

Não se justifique usando o poema. Me ame, e já!

Pode voltar.Perdi a parada.

Teu alvo levanta voo. Cansas do arco retesado e dormes sem saber o que Cupido apronta.

Agora chega, o cântaro está cheio. Tens água para cruzar mil desertos. Não vá desperdiçar com camelos.

Dormes grudada sob o céu noturno. Um anjo fotografa.

Foi-se o dia. Tudo repousa, menos o amor, que delira.

Não queres nada comigo. Usas meu verso para pegar passarinho.

Quero todo o mel do beijo prometido e dado entre suspiros no ano que finda. Não quero o desamor que te ronda quando desconfias.

Repito o verso que mexeu contigo para que lembres o irreversível.

O arrepio que percorre a trilha da tua pele vindo de fonte desconhecida é o que eu imagino. É uma espécie de vento sem motivo.

Não sei o que dizer quando o vazio se descortina. Então penso em ti, fonte legítima.

Se queres tanto, porque apagas o que te fere fundo de vontade e gosto?
 
És a pastora do meu rebanho de vontades.

Toco fundo porque és minha superfície onde molho o rosto exausto.

Agora voa, maravilha. Use meu verso como asa e brilho.

Fui acordado pela possibilidade do estrago.



RETORNO - Imagem desta edição: Sophia Loren, foto divulgada por @cineclassico.