22 de junho de 2009

O POETA COMO PERSONAGEM


Nei Duclós

Há o nerudismo, em dois vetores. Um, o épico, em que você faz gestos largos e tem a voz tremida quando canta nuestramerica. Outro, o íntimo, em que o crepúsculo se deita como um cachorro a seus pés. O épico,depois da luta, recolhe-se em frente ao mar, a apascentar leitores a distância. Lá ele cultiva lembranças, como o tempo em que tentou ser pragmático, quando celebrava a cebola e lamentava jamais ter construído nada com as mãos, nem mesmo uma vassoura. O íntimo migra para o apaixonado, o amante viajador. Ambos usam boné, imitado por todo mundo. É uma estranha compulsão. Parece que ao chegar a idade mais avançada, corre-se ao boné nerudiano de maneira obsessiva e misteriosa. Por que as senhoras idosas pintam o cabelo de azul? É tão enigmático quanto usar o boné de Neruda.

Outra persona é o poetinha, que tem Vinicius de Moraes como modelo supremo. Bebe uísque na banheira cheia com espuma, toma todas até amanhecer, quando sai de porta em porta pelas casas dos compositores a providenciar letras, como se fosse (o achado é dele) um “letreiro”, espécie de leiteiro-poeta. O poetinha é quase um Villa-Lobos, que ia ao concerto de chinelo por sofrer de gota. Fez carreira na diplomacia, mas esnoba. É amigo de figuras populares. Trata todo mundo no diminutivo. Quando a crise aperta, faz shows. Levanta o copo para a platéia e saúda: saravá! O poetinha é o tipo inesquecível que todos querem passar a mão na cabeça. Mas ele morde.

João Cabral foi o anti-poeta, com sua anti-poesia, escrita de fora para dentro, a partir do andaime até chegar ao reboco. O poeta cabralino sofre de enxaqueca, tartamudeia nas entrevistas e se esconde a maior parte da vida em lugares ermos, como se fosse nosso homem em Havana antes da revolução, ou um cônsul em Angola avesso às guerras, um adido no Senegal, vestindo linho branco. Em Sevilha, vai a touradas. Mantém a luz lorqueana e às vezes até sua música, mas, paradoxalmente, não faz concessão a elas. Gosta de ser comparado a um engenheiro e usa terno e gravata o tempo todo. Quando era chefe de gabinete do MEC, Drummond de Andrade tinha uma persona cabralina, apesar de chamar de “essas coisas” a poesia de João Cabral.

O poeta do avesso é diferente do cabralino, que é uma figura da alta burocracia. O poeta do avesso é como Quintana, que trabalha para sobreviver e acaba vivendo de favor. Passa a maior parte da vida tentando mostrar que o poeta é diferente do que dizem, não é condoreiro como Neruda, ou íntimo como o poetinha. É uma espécie de boêmio diurno, a caminhar a esmo por ruas sem sentido, meio de banda, carregando os mortos, e olhando o azul das venezianas. Não se identifica com nenhum ethos regional ou nacional. Nasceu na lua, vive ao Deus Dará. É reconhecido só depois dos setenta anos, mas, como Quintana, implora que não o chamem de septuagenário.

O herdeiro é outro tipo de poeta. Ele é uma espécie de substituidor de talentos. Ocupa o lugar do seu ídolo e, ao contrário deste, acaba na Academia. Tenta se diferenciar caindo no Mesmo, usando o boné de Neruda ou secando sua poesia até o osso. Não pode ser confundido com qualquer leite derramado. Cerebral, foi por um tempo o queridinho dos estudos de pós graduação literária. Hoje acumula uma obra de uns cem títulos e espera ser lembrado no minuto seguinte ao seu desaparecimento, o que é altamente improvável.

Há o poeta cool, que tira fotos sentado no chão encerado da biblioteca do seu apartamento nos Jardins. Representa o Brasil, apesar da pouca idade, em eventos internacionais. Tem um pé virtual em Nova York e um pé real no engarrafamento. Cita os clássicos. Gosta de poetas eruditos desconhecidos. Superou o leminskismo, o trocadilho que fica insosso na segunda leitura. Agora quebra o verso até virar uma pasta disforme. Prefere a sílaba à palavra. Cala mais do que escreve. Isso na poesia. Nos tratados, é boquirroto. Sabe tudo e mais um pouco.

O poeta pobre é o mais comum. Por falta de recursos, emprego ou patrocínio, não consegue ir ao Flip tomar umas birras. Não é convidado para eventos. Não ganha o suficiente para negociar publicações. Mora em meio a gavetas e é considerado um desperdício. Espécie de extra-terrestre consentido, é tido como bôbo pelas pessoas realmente próximas . Cresce sob essa suspeita. Quando chega à idade adulta, confirma o escrito e só faz bobagens. Como poesia, por exemplo.

RETORNO - Imagem de hoje: o legítimo e genial Pablo Neruda.

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