29 de janeiro de 2008

VIRTUAIS SEM VIRTUDE


Nei Duclós (*)

Informática um dia foi novidade. Lembro que nos deslumbrávamos com as palavras que sumiam na tela para reaparecerem depois. Isso deveria ainda hoje gerar algum espanto, pois não consigo atinar a origem de mágicas consideradas corriqueiras. Na mesma época, ao visitar a Rede Globo no Rio de Janeiro, um amigo jornalista me explicou o seguinte: "Você tecla aqui e Deus faz aparecer aquilo lá". Era o tempo da piada sobre a diferença entre software e hardware. Um deles faz barulho quando jogado no chão, me diziam. Eu ainda não conseguia digerir o conceito de algo real que não poderia ser empurrado com as mãos.

Fazer desaparecer as perguntas é o truque dos ilusionistas, que confiam na capacidade mimética dos consensos e da vergonha que temos de exibir ignorância. Não que eu vá estudar mecânica quântica para saber porque uma rede imobiliária inexistente, ou podre, consegue derrubar empregos e finanças de verdade. A economia é o reino dos sabichões e qualquer dúvida é tratada com indiferença olímpica, pois a situação está posta e não vá perguntar por que existem os juros. Mas o valor atribuído a signos que dependem de certezas graníticas tem a natureza volátil e está preso por um alfinete, como as hélices da rosa-dos-ventos.

Quando comecei a vida adulta, aos 14 anos, fui colocado atrás de um balcão de vidro, transparente, onde pontificavam anzóis e linhas de pesca, além de tesouras de vários calibres, canivetes e facas. Atrás de mim altas redes despencavam em cascatas de véus de noiva. Havia também os chumbos, as latas de café solúvel, as cadeiras de alumínio, os maços de cigarros, os caniços de fibra de vidro. E, por algum tempo, espingardas para colher perdizes, cada vez mais escassas nos campos. Era um espaço totalmente dedicado à economia real, mas havia brechas na bolha aparentemente indevassável.

Uma delas era o câmbio. Vizinhos da Argentina, havia aquela conversão entre moedas antes que a hiperinflação destruísse mais essa ilusão do Terceiro Mundo, exatamente a de ter moeda. A deles até exibia nome de absoluta concretude, Peso. O nosso, Cruzeiro, era mais uma constelação inalcançável, uma travessia por oceanos infinitos, uma cruz que carregávamos até que chegasse os planos cruzados no queixo. Para mim era impossível saber quanto alguém poderia deixar em Pesos o que eu estava vendendo em Cruzeiro. Costumava me atrapalhar e o dono do estabelecimento, meu pai, lançava o olhar para o alto quando vinha checar a operação.

Implico com o câmbio como implico com o dinheiro depositado que fica crescendo à custa do que me escapa. Qual a virtude de uma pilha de notas, que nem existem, mas são apenas representadas pelos sinais que jamais poderão ser jogados no chão? Pois deve haver virtude num produto que se multiplica pelo simples fato de girar de um lugar para outro, independente se está comprando anzóis ou tesouras.

Não é normal querer fazer perguntas quando tanta gente está envolvida num processo encarado com seriedade. Mas basta um alarme na madrugada asiática, um imóvel não quitado no país do dólar, para todo mundo colocar as barbas de molho. Será tarde demais para perguntas se houver um encadeamento de ruínas. Nem vai adiantar teclar aqui, pois Deus, possivelmente, nem vai fazer aparecer qualquer coisa lá.

RETORNO - (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 29 de janeiro de 2008, no caderno Variedades do Diário Catarinense.

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