20 de janeiro de 2008

GODARD: O PENSAMENTO ENFRENTA A VORAGEM


Nei Duclós

O amor se opõe ao estado, e as idéias, ao Império. Para que o amor exista, para que afirme a História encarnada na individualidade, para que não faça parte do poder global que nos devora, é preciso pensar sobre ele e pensar é criar cultura: uma cantata, uma novela, um filme, uma ópera.

No filme de 2001, O elogio do amor, Jean-Luc Godard segue os passos de um pesquisador em volta de seu projeto, que ainda não tomou forma, já que tateia as formas do seu objeto de estudo, envolvido com uma atriz que se recusa a colaborar, um financiamento que enfrenta a burocracia, testemunhas que mercantilizam suas memórias, laboratórios de interpretação frustrantes, diálogos em labirintos, encontros dispersos.

A complicação, em Godard, é fruto da ética. O assunto amor foi amarrotado pela indústria que aprisiona as almas e para encontrá-lo de verdade é preciso mais do que um travelling sobre o bosque que guarda os vestígios de uma antiga batalha, mais do que um passeio noturno na chuva, na noite e no inverno.

É preciso tomar nota à margem da produção em massa, para que o tema se revele na sua essência, fora dos limites impostos pelo desfecho das guerras. É onde o humano sobrevive, de costas para o comércio dos gestos, que o protagonista busca o pássaro arisco de sua aventura mental.

Quando foi que perdemos a capacidade de enxergar? pergunta Godard. Foi quando chegou a televisão e focou os acontecimentos, ou quando o cinema industrial criou uma rede gigantesca e profunda que ensina as massas a ver. Como voltar a ver? Mergulhando no processo que gera as idéias.

Quando vemos algo a que atribuímos ineditismo, quando vemos uma paisagem que decidimos ser nova, estamos é nos referindo ao que já conhecemos, portanto, quando pensamos numa coisa, no fundo estamos pensando em outra, diz Godard. É essa extrema sinceridade, esse congelamento, ou essa câmara lenta sobre como nos comportamos diante da realidade, que ele carrega como apanhador de estrelas cadentes.

Sim, tudo é poético em Godard. Isso não quer dizer que ele poetize suas imagens (a imagem não fala, segundo ele), ou busque a poesia na sua travessia. Ele é poético porque não desiste de uma idéia, a de que somos anteriores ao mundo transformado em mercadoria. Também não quer dizer que ele faça parte da desmistificação ideológica do capitalismo, que isso já provou o quanto é traiçoeiro. Ele busca na literatura, na experiência escrita dos grandes autores, a chave para trazer de volta a humanidade perdida.

Para isso, não se entrega à felicidade que possa existir nas descobertas, nem se deixa abater pela tristeza que há na verdade. Ele palmilha o terreno de virtudes soterradas, corrige homenagens excludentes, procura recuperar o talento perdido em afazeres brutos, e olha para a História que nos acompanha nas palavras, nas paisagens, sem que notemos.

A longevidade de Godard e sua vasta e complexa obra são privilégios dos seus contemporâneos e um farol eterno para os que virão. Nossa época não será lembrada por nada que sai nos balanços de fim de ano, de década ou de milênio. Ficará conhecida como o tempo em que Godard esteve filmando sobre a Terra.

Dessa luz é feita nossa grandeza, tão distante quando nos afastamos de Godard, e tão próxima quando vemos mais um de seus filmes antológicos. Viva Godard e seu legado: a humanidade que perdemos e que ele reconstitui com seu artesanato de ourives, seu olhar de águia noturna, sua paciência de mestre que não dá trégua, não permite defecções e que ama sem vender seu coração.

RETORNO - Imagem de hoje: Jean-Luc Godard, que no seu filme cita mais de uma vez os brasileiros como povo com origens, com alma, opondo-se aos americanos, que "não possuem um nome", já que América é uma denominação que se reporta a vários países.

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