14 de agosto de 2019

A CARA E A CORAGEM DO MEDO


Nei Duclós

Medo e inevitável para quem está vivo e passa por radicais transformações do berço ao desfecho. Mas cara e coragem para enfrentá-lo ou aprender a conviver com ele são opções. Você põe a máscara para sobreviver, mas isso tem a ver com o mundo de fora. Dentro a carapuça não cabe, você se vê inteiro, enxergando a morte como uma longa sucessão de perdas desde cedo. A escritora Aline Bei, que ganhou o Prêmio São Paulo 2018 como Livro do Ano na categoria estreante, expõe no seu romance O Peso do Pássaro Morto (Editora Nós, 2017, R$ 36 com a autora, frete incluído) esse tecido que embrulha a infância numa embalagem pesada do mundo adulto, e a vida adulta num celofane transparente de sentimentos dolorosos.

A estrutura do livro, em que cada capítulo corresponde a uma determinada idade (8, 17, 37, 48, 49, 50, 52), com a linguagem apropriada a essa marca do tempo, é um monólogo de solidão, abandono, desespero em busca do amor, que sempre falta nas relações familiares e profissionais. Tem tudo para ser um livro pesado, mas é leve pela maneira encantadora que Aline imprime em cada solução de linguagem, sempre surpreendente, em que as frases são expostas nas páginas em peças interligadas, orientando a percepção que fazemos de tão rica narrativa.



Como o livro é mais inteligente do que a resenha, é preciso não ousar inventar a pólvora e deixar que flua a contundência estudada da autora, um texto fragmentado e ao mesmo tempo inteiro, num ambiente quântico em que as realidades convivem aos saltos, esclarecendo a alma da personagem, dividida entre a frustração profissional, a memória afetiva, o embate com as rotinas, o recolhimento autoimposto e a crueza de dizer o que não pode ser silenciado.

Grande livro. Um assombro de talento e trabalho com a linguagem. Vejam isso: “...uma casa empilhada no meio de tantas outras naquela rua feia que por várias noites a lua esquecia de passar.”

A vida não tem cura. Escrever poderia salvá-la, mas quem evita a carta perdida que some no quintal abandonado? Aline não nos dá esperança, a não ser na literatura brasileira contemporânea.




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