10 de abril de 2010

A DÚVIDA EM AKIRA KUROSAWA


Ver Kurosawa é obrigatório: ele inventou o cinema que grandes cineastas copiaram. No seu centenário de nascimento, que se comemora este ano, é uma forma de homenagear os olhos e o espírito. E o correto é ver tudo, já que não existe Kurosawa menor. Ele sempre extrapola o que percebemos à primeira vista, pois usa sua arte como síntese e desdobramento de conflitos profundos, explícitos em cenas de grande confluência de vetores. É o caso de Anatomia do Medo (Ikimono no kiroku, 1955), de Akira Kurosawa, com Toshiro Mifune no papel do empresário que morre de medo da bomba H e tenta, em vão, levar a família para fora do perigo, o Brasil (já fomos uma vez o Eldorado).

O filme é sobre a dúvida, o medo é sua conseqüência. Há a dúvida que provoca o medo generalizado, surdo e mudo, que impede o pânico de vir à tona. Nessa doença social crônica as pessoas se iludem com a estabilidade enquanto paira a ameaça real do extermínio. “Ele está louco?” pergunta o psiquiatra da casa de repouso onde está internado o velho que pôs fogo na fundição da família para forçá-la a emigrar com ele. “Ou louco estamos nós que ficamos absolutamente impassíveis num mundo insano?” A dúvida é: devemos nos insurgir ou deixar como está, desde que não há nada a fazer? A maioria cede, mas alguns não.

O dentista interpretado por Takashi Shimura, um dos atores mais convocados por Kurosawa, junto com Mifune, sabe que o velho tem razão, mas tem dúvidas se deve ou não considerá-lo judicialmente incapaz, pois sua paranóia está provocando a ruína das finanças da família. A decisão do tribunal de pequenas causas é contra o empresário, mas isso provoca uma espiral de tragédias. É notável o detalhe de algumas cenas em que as pessoas tentam falar alguma coisa ao mesmo tempo depois de um longo silêncio. Ou quando custam a sair do lugar depois de um diálogo, como a considerar o que ainda vão dizer ou decidir.

Qual a síntese a que me referi acima nas seqüências de Kurosawa? Há vários exemplos. No início, a câmara passeia pela cidade lotada de gente, bondes, automóveis, barulho, e de repente fixa numa janela onde está o dentista que será o fio condutor da trama. No caos urbano de uma sociedade ameaçada, a vida normal da sobrevivência da classe média procura uma atividade social, que é a de participar dos julgamentos de casos familiares. O dentista que trabalha no consultório junto com o filho tem dúvida sobre essa atividade paralela e mantém com ela uma relação dúbia, de fascínio e ojeriza. Tudo isso está em poucos segundos de cinema. Kurosawa não brinca em serviço.

Num plano geral, vemos que a saga familiar é apenas um aspecto da luta de classes. O empresário que emprega dezenas de operários só pensa em salvar a família. Destrói o patrimônio que construiu ao logo da vida para tirar as pessoas próximas do perigo. “E nós?” pergunta o metalúrgico, “que vivemos desta empresa, o senhor não pensou em nós?” Flagrado no egoísmo, o velho entra em parafuso até a loucura. A própria ameaça da Bomba H é a extrapolação da luta de classes em escala mundial. Os impérios entram em choque e só a ameaça de solução final decide a parada.

Os Estados Unidos deveriam ter jogado a bomba em duas grandes cidades japonesas, onde não havia soldados, só civis, a maioria velhos, mulheres e crianças? A guerra já estava ganha, mas era preciso dar uma lição para vingar o ataque a Pearl Harbour (eles são os imperdoáveis). A bomba cairia de novo no Japão ou a antiga potência se enquadraria de vez no jogo do Ocidente? Vimos o que aconteceu. Mas em 1955, ano em que foi feito o filme, o Japão ainda se digladiava com suas dúvidas, recém egresso de um conflito que acabou com a imagem tradicional do país.

Kurosawa também teve dúvidas no inicio de carreira Queria ser pintor, mas não conseguiu porque a escola de arte era cara. Só foi para o cinema quatro anos depois que sua irmã mais velha, narradora de filmes mudos, se suicidou. Ele mesmo tentou suicídio (devo viver ou não?) numa crise de depressão nos anos 70. Cortou o pulso várias vezes. Não teve êxito. Sorte nossa, que podemos ver seus 30 filmes maravilhosos. Em relação a Kurosawa, não há dúvida: este é o cineasta maior. David Lean, meu favorito, que me perdoe.

RETORNO - Imagem desta edição: Toshiro Mifune, magistral, no papel do empresário que enlouquece em “Anatomia do Medo”, de Kurosawa.

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