27 de agosto de 2009

O OPERÁRIO COMO EXPIAÇÃO DE CULPA


Nei Duclós

O operário, classe social emergente do início do século 20 no Brasil, é o herói do modernismo, um movimento que, já nos anos 30, como notava Manuel Bandeira nas suas crônicas sobre literatura e artes plásticas, era um novo academismo. Esse processo se intensificou ao longo das décadas e se transformou no cânone. Apesar de inúmeros movimentos que bateram no muro da herança modernista, como a geração de 45, o concretismo, a Práxis, a catequese poética, entre muitos outros, a cultura inspirada nas classes despossuídas ganhou status de nobreza e acabou desaguando numa tragédia política.

De Tarsila de Amaral com seus rostos empilhados sob chaminés (quadro Operários, foto acima) ao Oswald de Andrade, do panfletismo da sua saga Marco Zero, e da Pagu com seu romance proletário, o operário foi entronizado como a representação do chamado povo pobre. Originalmente, o marxismo-leninismo foi incorporado com sucesso na periferia do capitalismo, como a Rússia, porque o operário era um privilégio a que as massas aspiravam e, por ser privilégio, foi ungida para tomar o poder. Não interessam as outras classes, o importante é que o assalariado das fábricas, como se fosse a raça escolhida, encarnou a representação de um novo fundamentalismo, que resultou no capitalismo engessado de estado do stalinismo ou no atraso isolacionista de Cuba.

No Brasil, o impasse foi resolvido graças ao trabalhismo, uma força política que foi derrotada, exatamente porque instaurava o equilíbrio entre o capital e o trabalho, o que não é admitido por nenhuma das duas partes. Tanto o capitalista, que diz amar o trabalho, quanto o trabalhador, que aspira ao capital, precisam da mediação do Estado para conviver pacificamente. Mas isso é impossível se de um lado existe o especulador e os juros estratosféricos, junto com os tubarões que dominam os meios de produção, e do outro o operário achando que foi escolhido para mandar nos outros.

Ao contrário da revolução de 30, que concentrou forças em outra representação, a do trabalhador, mais abrangente do que operário e menos preconceituoso do que o pobre, o novo academismo fez do ídolo operário uma expiação da culpa da classe média letrada. Antonio Candido, com suas justificativas toscas, citadas por Augusto Nunes, tenta esconder o que enfim foi desmascarado pelo governo Lula. A ilusão do operário analfabeto que enfeixava todas as virtudes que faltavam aos alfabetizados é apenas mais uma camada do deslocamento do qual nos fala Roberto Schwarz em Machado de Assis, um mestre na periferia do capitalismo. O Brasil precisa cultivar o atraso da sua superestrutura (as ideias, os debates, as leis, os conceitos, a política) para que fique impune a tunga dos frutos do trabalho da população escrava.

Hoje, quando há temor de mais tempo no poder para o PT, é bom lembrar a obra de quem elegeu os operários como heróis, tão nociva quanto a dos que elegeram os grandes ditadores como Hitler e Mussolini. Em novembro de 1935, uma quartelada desestabilizou um governo eleito pela Assembléia Constituinte. As massas, principalmente nos quartéis, estava impregnadas de propaganda pseudorevolucionária. Foi um movimento da Força Pública em Natal por melhores salários, um paredismo nas forças armadas insufladas pelo marxismo de galinheiro, que desencadeou o golpe e pegou o líder, Luis Carlos Prestes, da calças na mão.

Prestes e sua curriola tiveram que assumir a quartelada, que foi imediatamente sufocada, depois de uma desastrada investida no quartel da Praia Vermelha, onde houve assassinatos na calada da noite. Esse episódio inspirou o golpismo de extrema direita no Brasil. Primeiro, a tentativa de golpe foi abortada pela instauração do Estado Novo nacionalista em 1937, que lutou mais tarde contra o nazifascismo. Depois, em 1938, os integralistas tentaram matar o presidente com um ataque de gangs ao palácio do Catete. Finalmente, conseguiram derrubar Getulio em 1945, destruir sua obra em cinco anos e, ao sofrerem o revés das eleições de 1950, lutaram para levar GV ao suicídio.

Tudo isso culminou com 1964 e com sua consolidação, 1985. No plenário do Senado no mais recente 24 de agosto, José Sarney disse que em 1954 já fazia parte da UDN anti-Vargas, mas que o suicídio o deixou “comovido”. Não há limites para a cara de pau. É que hoje, depois que Lula provou a inoperância das idéias metidas as libertárias do operário como expiação de culpa, a obra de Getulio emerge como um transatlântico afundado pelos vermes. É impossível negar sua obra. Então mentem que se comoveram com o suicídio.

Esfregaram as mãos, isso sim. E fazem a festa hoje, quando um ex-operário, que nunca foi trabalhador no sentido de trabalho mesmo, amealha capital com sua dupla gestão de horrores. Ele e sua curriola, tendo à frente o ex-desafeto Collor e o meliante Palocci. É isso o que colhemos com a cultura a serviço dos equívocos. Uma produção cultural que passa pela carnavalização do Brasil, a cargo do teatro dito de vanguarda, primo-irmão do besteirol e das peças comerciais importadas. As denúncias do teatro russo contra a acomodação da classe média, que se referiam à ditadura tzarista mas que não podiam servir de parâmetro para a situação brasileira, intensificaram a culpa. Todos ficaram convencidos que Lula era a solução. Bastava o torneiro mecânico chegar lá, e pronto, estávamos com a alma pura e limpa.

O Brasil se sente culpado por ter se defendido das invasões paraguaias, por ter conquistado território aos hispânicos, por ter expulso os holandeses, franceses, ingleses, espanhóis. O Brasil tem vergonha de suas lutas e agora paga o maior mico abrindo as pernas para os cocaleiros como Morales, os falsificadores como Lugo, os leões de chácara como Chávez. Só falta o Equador vir aqui nos dar uns cascudos. A tudo suportamos, porque somos culpados, tão culpados que elegemos um operário para nos governar.

É como dizia Lampião, uma das duas cabeças do Othon Bastos em Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha: “Tenho medo de viver sonhando com a luz de bala que joguei em cima do bom e do ruim. Tenho medo do inferno, e das almas penadas que cortei com o meu punhal; tenho medo de ficar triste, e sozinho como gado berrando pro sol; tenho medo, Cristino; tenho medo da escuridão da morte.”

BATE O BUMBO: LEILA NO JABUTI


Minha candidata ao Jabuti deste ano é Leila V. B. Gouvêa , que concorre na categoria Teoria e Crítica Literária com seu livro Pensamento e "lirismo puro" na poesia de Cecília Meireles (EDUSP, 248 pgs., R$ 42,00). Leila, excelente repórter, com quem tive a oportunidade de trabalhar quando eu editava a revista Notícias Fiesp/Ciesp, é autora acadêmica séria, de grande talento e profundidade. Ela sempre me falava desse seu trabalho sobre Cecília, autora a qual dedicou sua vida, tendo inúmeros estudos sobre ela.

Seu livro está descrito assim: “A singularidade da poesia de Cecília Meireles face ao modernismo é a questão inicial colocada por Leila Gouvêa neste ensaio: para a autora, pode-se caracterizá-la como poesia moderna dentro da tradição pós-simbolista internacional. Analisando as obras de Cecília, desde a fase inicial até sua produção madura, a autora procura identificar o pensamento estético da escritora, a presença do cotidiano em sua poesia, como a genealogia do pensamento e da “metafísica” atravessa sua lírica, a presença do mito, a presença e o sentimento do tempo histórico na poética ceciliana. Alcides Villaça observa que a autora apresenta um generoso leque de perspectivas de interpretação, adicionadas a partir do ângulo de quem sente e pensa a poesia ceciliana: da alegorização platônica à presença viva dos mitos, do “canto encalacrado” à incursão histórica, da sondagem dos elementos musicais e imagéticos ao plano de uma dolorosa metafísica."

Um pouquinho de Cecília Meireles em Vigilância, do seu livro Mar absoluto: “E como adormecer nesta Ilha em sobressalto,/ se o perigo do mar no meu sangue se agita,/e eu sou, por quem navega, a eternamente aflita?”

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