17 de setembro de 2008

A CRÔNICA EM BRANCO


Nei Duclós

Lourenço Diaféria, que morreu de infarto no dia 16, terça-feira, é um cronista clássico. Faz parte de uma linhagem criada por escritores como ele, que não vieram do romance ou da poesia, como Machado de Assis ou Olavo Bilac, mas que se dedicaram apenas a esse gênero literário essencialmente brasileiro, nascido no jornalismo pátrio, e que é um reduto tradicional da liberdade de pensamento. Numa reportagem, editorial, cobertura, entrevista, o jornalista sofre muito mais limitações do que o livre-pensar da crônica. Diaféria é da mesma espécie de Rubem Braga, que não precisou voar para outras paragens e fez da crônica seu ganha-pão e sua transcendência. Mas, ironia total, ele foi marcado exatamente por uma crônica em branco, que não existiu, mas foi publicada.

Eu estava lá, posso contar. Trabalhei na Folha por dois anos e meio na segunda metade da década de 1970. Diaféria era o chamado boa-praça, sempre sorridente, de grande talento, querido por todos. Nós, metidos a revolucionários, que fazíamos parte da troupe do editor Tarso de Castro, achávamos até que ele era leve demais, pois estávamos em plena ditadura civil-militar. Nem sabíamos a porcaria em que ia se transformar o país nos anos seguintes. Deveríamos era agradecer aos céus por termos perto, todos os dias, o cronista da cidade, com uma popularidade que testemunhei pessoalmente, pois nesse momento o mundo explodiu.

Todos conhecem a história. Diaféria fez uma crônica sobre o sargento herói que salvou uma criança de um poço de feras no zoológico, as tais ariranhas, lontras gigantes ou lobos do rio. O cronista celebra a coragem do homem que salvou a vítima, mas que não resistiu às mordidas, e faz uma comparação com as estátuas dos heróis militares. Disse que o sargento sim merecia ser homenageado e não os que posavam nas praças públicas imobilizados em metal. A época era de patriotadas infames, de grande hipocrisia, pois sabíamos o que a ditadura fazia e ao mesmo tempo tínhamos que aturar o álibi perfeito proporcionado pela memória dos heróis. Ou seja, a tirania se escudava na imagem legítima dos nossos heróis de guerra para manter a opressão. Diaféria, o boa praça, o texto leve, sempre sorridente, tocou na ferida. E foi punido exemplarmente.

Lembro sua cara transtornada pela injustiça que sofreu, pois foi preso e processado. Em retaliação, Tarso de Castro publicou o espaço do cronista totalmente em branco, o que foi considerado uma ofensa ainda mais grave pelos ditadores. Na redação, choveu telefonemas dos leitores. Todos diziam a mesma coisa: “Se Lourenço Diaféria sair, suspendo minha assinatura ou então, deixo de comprar o jornal, pois eu só tenho a Folha na minha casa para ler o cronista”. Fiquei impressionado pelo carisma, a penetração, o prestígio, a grandeza do nosso herói dos textos diários. Mudei complemente meu conceito. Eu sempre lia sua crônica, mas pessoalmente tinha preconceitos, que sumiram nesses dias. Diaféria era o cara e nós, uns apagados escribas insubordinados, mas submissos.

Infelizmente, esse episódio foi fatal para Diaféria. Ele continuou produzindo, sempre bem, sempre bom, publicou vários livros de crônicas, mas nunca mais foi o mesmo. Era diferente. Não se tratava mais do cronista da cidade, querido e festejado na ascendente Folha de S. Paulo. Era uma pessoa marginalizada, contra a qual se desencadeou a fúria do tempo, a injustiça contra o talento, o horror contra o sorriso e a emoção. Agora Diaféria partiu e ficamos a sós, com sua obra. Um cavalheiro, um homem do bem, de olho claro e riso aberto, a nos ensinar o convívio decente e humano numa redação, lugar de rilhar os dentes.

Ele passou pela vida e deixou seu legado. Primeiro, o do escritor determinado e de fôlego, que soube ser fiel às suas origens e sua cidade. Segundo, a pessoa corajosa que fez da crônica sua trincheira. O exercício da liberdade, em Lourenço Diaféria, é o tesouro que agora compartilhamos. Também virei cronista, seguindo o seu exemplo. E tenho liberdade para escrever graças a Lourenço Diaféria, que na hora decisiva soube combater o bom combate.

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