8 de abril de 2008

PALÁCIO INTERIOR

Nei Duclós (*)

Ninguém nasce pronto, mas isso não convence os entrevistadores. Eles precisam de pessoas à altura da brutalidade competitiva. É uma ilusão: é impossível ter alguém que caiba no cargo sem fazer ruído, a não ser que o pretendente seja um gênio do marketing e manipule seu currículo de tal forma que o truque passe despercebido. Quando a corporação se dá conta, o sol já está alto.

No fundo, todos se adaptam às situações e levam a vida inteira para superar aquela força de inércia que nos prende ao humano e não permite que viremos autômatos de uma vez por todas. É o coração quem manda, e a razão, para complicar, não costuma obedecer. Somos seres culturais misteriosos, capazes de fazer qualquer coisa para mimetizar a precisão do relógio suíço, enquanto dormimos profundamente nas palestras de incentivo.

Até existe compreensão, no mundo profissional, que tolera essas limitações. Para aumentar a produtividade, reinventaram a sesta. Chefes esclarecidos nanam os funcionários implantando redes para o descanso em pleno expediente. Decidiram o dia do traje casual, aquela data em que, no lugar do terno de luxo, as pessoas optam pelos tênis de marca. Não existe informalidade no lugar onde se ganha o pão. Mesmo com incentivo, o que se revela é a velha máscara de guerra. Tão eficiente que já faz parte da natureza.

É por isso que existe perigo na aposentadoria. Sem essa casca, a pessoa se descobre nua como veio ao mundo. Perde a importância, não tem ninguém mais para enganar, as demandas somem e os horários voltam à forma original do caos primordial. Os dias passam como tempestades de verão. O eterno domingo é uma prisão definitiva. Na chamada melhor idade, a compostura vai também para o saco quando se resolve levantar os braços e vibrar as mãos ao som de Mamãe Eu Quero. Desde que a velocidade da tecnologia superou a sabedoria acumulada dos anos, não se sabe o que fazer com os velhos.

O problema é que o mundo transformado em mercadoria faz de tudo para que as pessoas esqueçam a fonte da vitalidade: o exercício pleno do estado de arte, da forma como bem entendemos. Não apenas o consumo cultural, importante, mas não decisivo. O que vale é a criação, fruto da transcendência que devemos buscar em vida. Não se trata de pegar um filminho para o fim-de-semana (e sair comentando "a fo-to-gra-fia!"), ou se reunir com os amigos para arriscar um banquete sob o fragor de charutos e vinho (suspirar por lareiras não salva ninguém do tédio).

Trata-se de manter habitado o palácio interior, o único luxo verdadeiro que dispomos. O importante é a resistência do espírito em qualquer condição social. E isso se consegue longe das ilusões corporativas, por mais gostoso que seja trabalhar com o celular na mão. Ou longe mesmo das ilusões pessoais, como montar uma pousada na serra só porque "gosta de gente", como aconteceu com notório ator que confessou o erro publicamente.

O buraco é mais fundo. É naquele canto, em que você cria o poder de continuar vivo, a partir do que é e sabe e consegue superar, que se dá a batalha. Vire um inventor, um criador, um artífice da cultura imaginada e herdada e enfrente os entrevistadores com a cabeça erguida. Você é, sim, um sobrevivente. Mas, se for tão habitado que pareça um mar, estará perto da divindade. Quem poderá ameaçá-lo?

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 8 de abril de 2008, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: "Sesta", de Emièle.

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