22 de novembro de 2006




HUMOR E DENÚNCIA EM MONTEIRO LOBATO

Nei Duclós

Participei recentemente de um debate no orkut sobre a velha calúnia de que José Renato (mais tarde, Bento) Monteiro Lobato era racista. Por sorte, chegou até aqui na ilha, via correio, enviado por Laís Heberle, o livro Urupês, o fundador da literatura lobatiana e um dos livros, como tudo em Lobato, que é uma sementeira farta de criação e nacionalidade. Com 14 contos e um artigo, o livro é um primor de construção literária (o boxeador Lobato não perde uma só frase, nenhuma letra é colocada em vão). Por que levei tanto tempo para ler essa obra que praticamente fundou a indústria editorial no Brasil, pois seu sucesso viabilizou a empresa do autor numa época em que os livros eram impressos na Europa? Sei lá. Só sei que fiquei energizado de novo com o texto lobatiano, como acontecia quando eu mergulhava, anos a fio, no Sítio do Pica-Pau Amarelo. É o meu escritor favorito. Pelo que faz com a palavra, parece que o vemos contando histórias. Enxergamos claramente o conteúdo de sua narrativa, inventiva até o osso e brutal, de uma brutalidade lúcida e humana que nos faz falta como nunca. E que se presta, exatamente pela sua força, a inúmeros equívocos.

POSSE - O grande feito de Lobato nesse livro foi denunciar o esquema que domina o país por meio da política e da posse e mau uso da terra. A malandragem, a mentira, a crueldade das pessoas poderosas escorrem como fel das páginas destas narrativas. A chamada elite (o grupo privilegiado que se beneficia de toda essa bandalheira) impera na nação roubada, vilipendiada e por isso mesmo, condenada ao atraso. Mas Lobato sabia de tudo. Não iria fazer uma denúncia pão-pão,queijo-queijo. Ele simplesmente vira o binóculo ao contrário e seduz o leitor (os brasileiros vítimas desse sistema de exclusão e que estão em todas as classes sociais, especialmente a classe média, que comprava seus livros) criando a representação da ponta do varejo da exclusão. Sua definição do caboclo, que não deita raízes sobre a terra latifundiada, e é tocado de um ermo para outro, é o poder escancarado dos coronéis do mando e do garrote. Ao inventar o Jeca Tatu, Lobato decifrou a unha encravado da vida comunitária no Brasil. A partir do Jeca, toda uma linhagem cultural se formou, de Mazzaroppi à música sertaneja. O que ele denuncia como ausência de arte no caboclo acabou se transformando em arte popular genuína, pois o povo entendeu o recado e assenhorou-se do retrato para tornar-se visível na nação cega.

ROUBO - Apesar de um recado tão explícito, o trabalho de Lobato costuma gerar calúnias sobre ele. Pode-se imaginá-lo preconceituoso em relação ao povo e a suas artes. Pode-se tachá-lo de elitista bruto ao comparar o caboclo a uma praga silvestre. Mas seria pobreza mental em demasia não ver exatamente nisso que parece ser preconceito ou racismo, o toque genial de sua personalidade literária. A terra roubada nos cartórios e na política serve só de enfeite para o enriquecimento, pois este vem do compadrio, das propinas e dos golpes. Ao descrever a fazenda do ex-colega da faculdade que enriqueceu com o casamento, Lobato explica: "Fausto era fazendeiro amador. Tudo ali demonstrava longo dispêndio de dinheiro sem a preocupação da renda proporcional; trazia-o no pé de quem não precisava da propriedade para viver." No clássico O Comprador de Fazendas (transformado em filme), a terra dá prejuízo e apenas engambelando os possíveis compradores será possível tirar o pé da jaca. Em Um Suplício Moderno, ele diz textualmente: "É honra penetrar na falange gorda dos carrapatos orçamentívoros que pacientemente devoram o país". Um país das Arábias segundo sua definição, em que medram o analfabetismo e o aliadismo e a falsa literatura ("o romance traduzido de Jaime Ohnet").

AVISO - Ao longo de todo o livro, o leitor tem a chance de gargalhar com as tiradas de Lobato, criador de vários neologismos como olhodaruável (situação dos que têm chances, depois de uma eleição, de ir para o olho da rua). Nem se trata de ironia, esse biscoito fino de massas sedosas. É escracho mesmo, é galhofa, é coragem de dizer com todas as letras o que vai pela nação embasbacada. Foi por essa contundência que Lobato fez sucesso e se destacou como a grande personalidade do primeira metade do século vinte. Uma obra que causa polêmica ainda hoje, pois os inimigos de Lobato continuam por toda a parte: os burros titulados, os medíocres cruéis, os carreiristas. E as vítimas apontadas por ele continuam na boca das elites imbecis, ainda convencidas de que o povo excluído é igual ao caboclo descrito por Lobato há cem anos. Esqueceram da profecia de Antônio das Mortes, o matador de cangaceiro (o caboclo nordestino que se insurgiu) em Deus e o Diabo: "Ainda vai haver uma guerra grande nesse sertão". Depois não digam que Monteiro Lobato não avisou.

RETORNO - Imagem de hoje : capa de J. Wasth Rodrigues para Urupês, 1ª edição, 1918. O desenho se refere ao conto "O mata-pau" sobre o hábito endêmico de sugar a vida alheia que existe em todo o tecido social no país à mercê da incúria.

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