14 de outubro de 2006

COMO FUNCIONA A DITADURA





Desde o momento em Juscelino Kubistchek (e outros políticos da democracia deposta) aceitou em 1964 que o primeiro general assumisse a presidência depois de ter dado um golpe de estado, o Brasil entrou num processo de aceitação total e absoluta da ditadura que até hoje nos governa. Essa aceitação ganhou sobrevida quando o movimento das Diretas-Já foi derrotado no Congresso e José Sarney, que antes liderava o partido de um regime que já tinha 20 anos, assumiu o Planalto em 1985 por via indireta. O segundo turno das eleições é um bom momento para entender como funciona essa ditadura, implantada com um golpe civil-militar e consolidada com a aceitação total e irrestrita das dita oposições. Ela nos oferece dois candidatos com a mesma proposta de política econômica (a diferença é só na dose, disse Alckmin), ou seja, com o mesmo sistema de aumento exponencial da dívida externa, e juros escorchantes pagos pelo dólar subsidiado (o que ganhamos na exportação, devolvemos nos juros). Nisso ninguém mexe e, neste recreio (para usar uma imagem de Antonio Callado) pseudo democrático, os eleitores se acusam mutuamente de corruptos ou direitistas. Por que estamos nessa sinuca?

PASSAPORTE - Por que a ditadura cuidou de destruir o essencial logo no início: o sistema educacional que tinha alcançado excelência e que vinha não apenas da Era Vargas, mas, em parte, do Império e da República Velha. Gerações formataram o sistema público de ensino que foi sucateado. O que restam são algumas faculdades, que mantém sinais do que éramos antes em educação. Destruindo a educação, a ditadura introjetou na população a baixo auto-estima, passaporte seguro para o desemprego ou o subemprego, e para a subserviência total da nação. Antes, você fazia o primário, o ginásio, o científico e uma faculdade e saía pronto para o mercado de trabalho. Ia ser professor, engenheiro (vejam quantos edifícios e pontes caem hoje; duvido que ensinem calculo infinitesimal com eficiência nos currículos técnicos), advogado, médico. Era uma minoria? Sim, mas havia possibilidade de ascensão social, basta ver o caso de JK, filho de mãe viúva e pobre que chegou a ser médico e depois entrou para a política pela mão de Benedito Valadares, o tertius apresentado por Vargas para resolver a disputa de poder em Minas nos anos 30 e 40.

COMÍCIOS - Hoje há exceções? Sim, mas proporcionalmente estamos com uma massa de analfabetos cursando inclusive faculdades (antes, quem não se alfabetizava reprovava, não ia adiante). Converso no ônibus com alguém que tentou fazer a faculdade de Direito, a pedido do pai, no sistema privado de ensino. Desistiu. Não ensinavam nada. Os professores eram frustrados, não exerciam a advocacia, não tinham feito universidade gratuita. Nos anos 60, quando a juventude se insurgiu contra a ditadura, vi lideres secundaristas fazerem discursos citando Aristóteles. Éramos eruditos, tínhamos sido formados pelo ensino que a ditadura então destruía. A principal reivindicação era para não acabar com o sistema via Reforma da Educação, do Jarbas Passarinho, que até hoje está aí, junto com o Delfim Netto, falando o que quer.

EDUCAÇÃO - Ao destruir a educação, formou-se uma nação de zumbis. E de espertalhões, como os economistas que viraram banqueiros, os líderes sindicais que viraram políticos, além da velha e tradicional direita, que se locupleta numa situação de completa tirania. Lembro de um candidato interessante em São Paulo que fazia uma proposta por dia na campanha gratuita da televisão. Aceitava sugestões e teve 60 mil votos para deputado federal. Não foi empossado, porque sua legenda não completou a cota. Em compensação, Ulysses Guimarães, que teve 35 mil votos, foi empossado. É assim que funciona. Primeiro, a escolha dos candidatos, que obedece a critérios fixos (notoriedade dos medíocres, tradição das raposas, emergentes apaniguados). Segundo, a campanha manipulada por pesquisas e outras falcatruas. Terceiro, o voto útil, que é o atual voto de cabresto. Depois o mandato, que é o pagamento das despesas de campanha. Não existem mais partidos (estão todos queimados pela corrupção e os arreglos, hoje são só números), nem ideologia. O que temos é ditadura.

BRUTALIDADE - Na mídia, a tirania se completa. Vitrina excessiva e intensa de badulaques e quinquilharias, além de propaganda ilícita religiosa e partidária,há redes de televisão que costumam funcionar como a ponta de lança dos interesses do tubaronato. Não há um só programa cultural na TV aberta. O que é mostrado para a população desarmada e catatônica são corpos nus, catequistas de auto-ajuda, a idiotia dos com-certezas e os noticiários sempre os mesmos. Essa é a ditadura. Terra arrasada? Sim, total. Qual a saída? Reconhecer que isso existe e é assim que funciona. A partir daí, se mexer. Comece com o seguinte: não chame quem vota anti-Lula de neoliberal ou direitista. Não chame quem vai votar anti-Alckmin de esquerda. Recomponha-se, que nossa vida foi dedicada a consolidar uma longa, penosa e infindável brutalidade política e social. Devemos isso aos nossos descendentes. O que fizeram da vida? perguntarão. Aceitamos a tirania e morremos sem lutar o suficiente, responderemos. Esse vai ser o epitáfio.

RETORNO - Imagem de Hoje: foto de Alvarez Bravo, publicada na melhor revista cultural do mundo, Sagarana, editada por Julio Cesar Monteiro Martins, que está completando seis anos com magnífica edição comemorativa e que inclui mostra virtual com imagens de grandes artistas. Obrigatória não apenas a visita, mas a leitura. Leia Sagarana, revista em italiano editada por um escritor brasileiro, e que é uma porta escancarada para a civilização e a verdadeira democracia. O Brasil da ditadura expulsou Julio Cesar, que hoje é consagrado escritor na Italia.

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