2 de setembro de 2006

ANDAR É SER OBSERVADO





Aprender a caminhar, para quem sai do berço, já é assumir uma identidade

Nei Duclós

Todo mundo sabe como John Wayne anda. É o caminhar mais imitado do cinema. As pernas possuem vida própria e há um ritmo diferente no gesto que ele imprime ao tronco. Parece que anda meio de lado, como a espreitar inimigos. Ao mesmo tempo, é um andar franco, desassombrado, grandalhão. Robert Mitchum tem outro tipo de passo. As pernas vão a reboque da sua vontade de andar, fazendo com que seu corpo (encimado por formidável cara de sonso) flutue enquanto os pés palmilham territórios há vários segundos deixados para trás.

Aprender a andar, para quem sai do berço, já é assumir uma identidade. Pelo ritmo, pela postura assumida no caminhar de qualquer um, é possível dizer quem ele é. Por isso atores como John Travolta costumam modificar o passo para criar personagens. Mas quem encontra o passo certo (contundente, personalíssimo) diante da observação alheia, não abre mão dele, seja o papel que for desempenhado.

Quando aprendemos a andar, descobrimos que essa ação está sendo acompanhada com atenção redobrada. O mundo adulto volta os olhos para você, na expectativa e ao mesmo tempo pressionando-o para que você se saia bem da empreitada. É importante que uma criança ande, o que irá amenizar o trabalho dado aos adultos. É também sinal de saúde física, de coordenação motora e, infelizmente, de precocidade (a pressa em fazer o nenê andar é que inventa as pernas tortas de tanta gente).

Andar, portanto, é ser observado, o que torna essa atividade tão fundamental no teatro e no cinema. É preciso chamar a atenção para o personagem a ser criado. Atrair a atenção alheia é fazer a criatura andar. O passo do terror é conhecido: pé ante pé, pesado, fazendo o tronco acompanhar o esforço de maneira tacanha. O passo do medo costuma ser obviamente trêmulo, ou trôpego. A comédia usa o andar para compor o riso na cabeça da platéia. Buster Keaton é duro, com pernas e quadris em movimento burocrático. Chaplin usa o excesso dos sapatos para inventar o andar do palhaço distorcido pelas luzes do circo. Há o andar imperceptível dos ladrões. Não se iluda: se você for roubado, não escutará nada. Se escutar, você tem uma chance, o ladrão é ruim de bola.

O andar furioso é curto, apressado. O andar sensual é a base bamba de um templo majestosamente curvo. O passo de ganso é o nazismo impondo seu tacão no mundo. O do marreco são as pernas tortas que pretendem ter um andar militar, mas não conseguem. O andar na ponta dos pés te surpreende. O andar duro do salto alto é um pedido de passagem na calçada estreita. O andar cria espaços imaginários diante da câmara. É uma ferramenta que não pode cair em si, como os ombros. Quando José Wilker gira, ele está decidindo que não quer mais estar ali, que vai inventar outro cenário para o seu personagem se movimentar. Bruna Lombardi como Diadorim andava como se estivesse caindo, o mesmo tipo de passo de Romário quando se retira do campo. Andar é o bicho mais humano que podemos criar.

O andar dos anos cinqüenta, aprendido nas matinês, era bem específico. Na calçada larga, sabíamos que mil olhos voltavam-se para nós. Tínhamos platéia, era preciso caprichar. Havia uma dança comandada pelos ombros e pelo tronco, que se revezavam no impulso para frente. Nesse bambolê estranho havia o charme de passar a mão no topete ou jogar a cabeça para trás para acertar o cabelo caído. Uma leve raspadinha com a sola do sapato no chão era admissível, desde que não se exagerasse na dose. Isso dava a impressão que atrairíamos garotas tontas com nossa performance.

Mas no fim nos reuníamos em grupos nos postes, carros estacionados (já que não tínhamos carros) para ver olhar o que realmente interessava: o andar das gurias, que costumavam levantar a sola dos pés para ganharem altura enquanto iam para frente, ao mesmo tempo em que viravam o rosto para nós, felizardos daquela época sem igual. Andar, naquele caso, era observar. Mas quem andava na nossa frente voltava os olhos para nos ver parados. Nunca foi tão bom ser platéia.

RETORNO - 1.Imagem de hoje: minha neta Maria Clara de casaco azul. Foto de Juliana Duclós. 2. Esta cronica foi publicada neste fim de semana no caderno Donna DC, do Diário Catarinense.

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