15 de julho de 2005

SAM PECKIMPAH, A AMÉRICA SEM ESCRÚPULOS




Sam Peckimpah revelou o imaginário da América: a violência sem limites, necessária para um país que se transformou num império e que hoje, na maior cara de pau, tem certeza que é dono do mundo. Antes de Sam, não havia sangue no faroeste. Nem havia tiro, apenas alguns estampidos que sempre ricocheteavam nas pedras, fazendo um barulho agudo que imitávamos em nossas brincadeiras na infância. Não existem heróis morais em seus filmes, apenas pistoleiros sanguinários, que fundam uma outra ética: a dos guerreiros que lutam o tempo todo para aniquilar o que estiver na frente. A solidariedade masculina que surge dessa opção é o machismo carismático do poder das armas e da investida suicida. Para deixar explícito o seu recado, Sam filma a mortandade em câmara lenta. O sangue sai das feridas abertas para inundar a tela. A humanidade, na sua ótica, é um projeto perdido. No início de seu filme maior, Wild Bunch, crianças atiram escorpiões no formigueiro, numa representação do ódio de berço, o que faz a diferença num território sem lei, a nação que anexa territórios pela violência.

MALFEITORES - Sam Peckimpach é um cineasta que aproveitou até o limite a tecnologia cinematográfica desenvolvida em décadas de indústria subsidiada pelo governo. Quando a ética era necessária, tínhamos heróis solitários como Gary Cooper em High Noon, ou mesmo anti-heróis que caem em si como John Wayne em The Searchers. Com Sam, tanto faz William Holden ou Robert Ryan: ambos são malfeitores, um a serviço do bando selvagem, outro a serviço da ferrovia. Não importa a natureza dos protagonistas. O objetivo é desmascarar o inimigo, os mexicanos bandidos, usurpadores de uma terra que pertence ao destino manifesto do imperialismo armado. Os guerreiros privatizados fazem parte dessa cidadania perversa que se impõe pela força e faz uma guerra total ao poder que se interpõe ao massacre, seja ele legal ou não. Esse cinema, que gerou clones bastardos como o Quentin Tarantino dos Reservoir Dogs e o Scorcese de Taxi Driver, é fruto também da crueza inventada pelo cinema de arte, que confrontou a babaquice dos filmes bem comportados e acabou destruindo os limites éticos da sétima arte. Sergio Leone, com Era uma vez a América, é seu co-irmão de sangue. Todos aproveitam a euforia americana de prepotência para brincar de vilania. Os bandidos de capa até os pés de Leone são resultado de Antonio das Mortes de Glauber. A cara facinorosa de Corisco inspira Sam nos momentos decisivos da morte sem quartel. De tudo isso resultam Mel Gibson e suas máquinas mortíferas, desvinculados da ética denuncista dos cineastas radicais, incluindo aí Nickolas Ray e Arthur Penn. Estes, mostraram como se faz um diagnóstico do horror. Sam não tem escrúpulos e celebra a força bruta como estética vitoriosa.

TORTURA - Mas o próprio diretor pune a própria escolha ao destruir todo o cenário num banho de sangue no final de Wild Bunch. Os anti-heróis sem limites destroem-se na coragem que escolheram. O rescaldo de seus filmes ainda pode ser encarado como uma ética, mas o que fica são as imagens poderosas e a glória de morrer em cena para o delírio das fantasias demolidoras dos espectadores. A falta de compromisso fez do faroeste italiano um sucesso de bilheteria. No fundo, tudo foi cevado naqueles filmecos em preto e branco que esses cineastas citados viram quando criança. As brincadeiras infantis davam a receita: como era possível matar sem ser punido, morrer para reviver na aventura seguinte, então para quê a lei e a ordem, se tudo se resumia a um tiroteio sem fim? Só que os adultos infantilizados forneceram a desculpa para que o império fabricasse sua fábrica de massacres. Ou então o cinema é resultado dessa política: há sintonia implícita entre o Vietnã visto na TV e os filmes de Sam, há sintonia explícita entre Rambo e a versão da vitória no sudeste asiático. Tudo podia desde o momento em que os filmes americanos transformaram a participação da América na segunda guerra como o álibi perfeito para invadir o mundo. Tudo ficou permitido e Sam é o pioneiro desse cinema que despejou a carne retalhada dos escravos no olhar horrorizado (e fascinado) dos espectadores em todo o mundo, dominado pelo sistema de distribuição da ditadura imperial. Podemos gostar do cinema inventado por Sam, mas estaremos caindo na armadilha. Que importa, se seus epígonos acabaram fazendo coisa muito pior, e sem a consciência do Mal que o torturava?

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