26 de setembro de 2004

O PAÍS INSUPORTÁVEL


Uma coisa não me sai da cabeça: a de que os cidadãos brasileiros, desesperados com o país onde vivem, aproveitam as más condições das estradas e o caos do trânsito para praticar suicídio em massa. É a forma mais rápida e eficaz de escapar da realidade que nos é imposta. Aqueles que colocam o som no mais alto grau de decibéis de sua aparelhagem em carros de capô levantado na praia, ou mesmo que fazem propaganda de qualquer coisa, política ou não, em níveis criminosos, compartilham do mesmo sentimento: atordoam-se a si e os outros para criar um outro estágio de consciência, ensurdecendo-se diante do horror para privatizar a loucura que é coletiva. No fundo querem ser salvos: exigem que parem esses motores e essa barulheira, apelam para que os outros os tirem do pesadelo. Mas somos insensíveis: agüentamos calados e tapamos os ouvidos.

LOIRAS - Ou até mesmo, como faz Fernando Gabeira na Folha de ontem, encontram argumentos positivos para justificar qualquer coisa. Se fôssemos uma civilização fundamentalista islâmica, diz o parlamentar e escritor, estaríamos todos proibidos. Ou seja, colocamos como contraponto à situação insuportável algo ainda pior (na visão de Gabeira, que engrossa o coro pós 11 de setembro contra o islamismo) para que encaremos com galhardia o que nos faz o último país sobre a terra. Na Folha de hoje, a contradição entre o que somos e o que os outros conseguem ser está explícita em dois cadernos. Enquanto o magnífico Mais!, entre inúmeros textos imperdíveis, traz uma vigorosa entrevista do dramaturgo Tony Kushner (que nos deslumbrou com o roteiro da sua peça Anjos na América, vencedor absoluto do Grammy americano) na Ilustrada os jornalistas se esforçam em transformar a miséria na TV em algo pensável. A capa do suplemento traz um artigo sobre a decadência das loiras na TV e a comentarista Bia Abramo tentar ver com dignidade uma dessas coisas que assolam a programação de domingo, nesse caso, na Band à tarde. Tony Kushner bate impiedosamente m Bush, enquanto nós sintonizamos a perda absoluta de vigor cívico, artístico e político. O que temos de melhor não sobressai na mídia. Ontem, o tal cantor Daniel estava no programa vespertino da Record (que tinha crianças imitando adultos o tempo todo no palco, num espetáculo de indizível estupor) e no Ratinho à noite, onde o tal Daniel fazia dueto com talentos infantis que imitavam seu estilo horrendo de interpretar. O que passamos para nossas crianças é um mundo cultural deformado. O que servimos ao público adulto leitor é um cardápio intragável.

ESCOLINHAS - O que o Mais! traz de bom, infelizmente, é a cultura estrangeira. Ficamos sem nada a oferecer, a não ser restos de um imaginário que mistura espetáculo de bordel com exploração pura e simples de analfabetismo crônico. Programas de perguntas e respostas atestam nossa indizível mediocridade. Até quando? Até, talvez, baixarem de vez a censura, pois para isso que serve tanta apelação: para provar que numa ditadura como a atual não é possível existir a chance de nos expressar de maneira livre. Brasileiro é tão bonzinho, mas não presta: esse é o recado permanente. Por isso tanto subemprego e educação desmoralizada (vejam quantos programinhas humorísticos que achincalham as escolas). Outras coisa sempre a ser desmoralizada é a atividade política. Na Praça da Alegria, do SBT, um personagem corrupto e ladrão faz a festa, colocando todos os políticos sob o mesmo teto. Fica assim mais fácil conformar-se com César Maia (que surgiu pela mão generosa de Brizola) e não acreditar em Jandira Feghali, a mais articulada, inteligente e contundente parlamentar do país, que deveria ser a próxima prefeita do Rio. Fica fácil votar eternamente contra o Maluf (que está abaixo da crítica) para eleger nulidades com a dançarina e cantriz Martha Suplicy ou o funéreo Serra. Escolas públicas de alto nível geraram uma multidão de especialistas maravilhosos que fizeram a fama do país (gestaram também traidores, mas isso faz parte do processo, pois como vamos saber quem será o próximo a fazer carreira com dinheiro público e depois cuspir no prato em que comeu?). Escola de qualidade tem a ver com políticos com grandeza. Quando as duas coisas estão sendo achincalhadas na TV, é hora de ficar alerta. Afiar o espírito crítico e exigir que os mesquinhos e arrogantes saiam da programação e da mídia e deixem o espaço livre para a inteligência e a ética.

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