23 de setembro de 2004

A MUTAÇÃO DOS ESPAÇOS


O impressionante clássico (tudo aquilo que merece ser estudado em classe) de ontem entre Santos e Flamengo foi tão intenso e cheio de eventos que a pressa em escrever cai na tentação de deixar de lado suas principais revelações. Mas, para não perder o mote, podemos definir a pauta da seguinte maneira: a bola disputada nos mínimos detalhes multiplicou o que mais falta no futebol, espaço para fazer a jogada e chutar em gol; o passe de calcanhar pode ser feito seriamente e não expressar apenas uma firula; o comando coletivo flamenguista (Junior e Ricardo Gomes) contrastava com a estratégia do artista solo (Vanderlei Luxemburgo); a composição randômica de craques veteranos e novatos, em ambos os lados, descreve uma solução eficaz para a crise do futebol brasileiro; e o gol de Deivid aos 46 minutos e meio do segundo tempo confirma a tautologia de espantosa profundidade do grande cartola corintiano, Vicente Matheus, de que o jogo só acaba quando termina.

SUPERFÍCIE - O que é um campo de futebol? O vazio dos estádios depois dos jogos, já disse o poeta Marco Celso Viola. Um gramado não é nada, a não ser que os jogadores façam dele um volume de possibilidades. O drible é a invenção da clareira; um passe é o perigoso movimento de uma placa tectônica (que na geografia é uma teoria que não me convence); o resgate da bola no extremo canto é um atentado à verossimilhança. Esse cruzamento de coisas faz com que, na maior parte do tempo, a guerra se manifeste pelo choque entre os ossos, os agarrões na camisa, o debruçar-se sobre o cangote alheio para fazer um cabeceio impossível. Tudo levaria à morte se o futebol fosse um jogo de verdade. Mas como é o fino da representação do conflito, uma brincadeira adotada pela divindade, tudo fica mais fácil de entender: o futebol é a definição de destinos e a glória suprema de heróis que se retiram ainda moços para uma vida intranqüila. Por isso torço por Maradona em sua nova fase em Cuba. E acho brilhante a aposentadoria do Rei Pelé, que vai doar para a caridade seu salário. Eles continuam jogando cada vez melhor. Basta rever qualquer um dos seus gols, feitos neste mundo sem graça, a não ser que Robinho ponha na gaveta o pênalty precioso de uma classificação. Ou que os goleiros Mauro, pelo Santos, e Julio César , pelo flamengo, interponham limites à mutação constante de espaços gerados pelo movimento dos atacantes.

FÔLEGO - De onde os jogadores tiram tanto ar? Como conseguem fazer do fole dos pulmões o instrumento de uma capacidade infinita? É fácil entender isso entre os mais jovens, mas o que dizer dos que nasceram muito antes? O que deu graça, força e gana no jogo foi o equilíbrio entre idades diferentes, que deveria ser o perfil de todo time que se preze. No jogo de ontem, tínhamos, pelo Flamengo, Zinho e Junior Baiano (que limpou sua biografia nos noventa minutos em que disputou com raça todas as bolas e ainda foi decisivo num dos gols do seu time) ao lado de Ibson (que comeu a bola) e Felipe (sempre craque). E do Santos, tínhamos Ricardinho distribuindo bolas para Robinho e o resto da meninada, incluindo Basílio, não tão jovem assim. Todos iam buscar, ninguém desistia de nada. Era um jogo de decisão da Copa Sul-americana, que encerrava um conflito nos bastidores. A Globo teria pressionado o Santos a participar da Copa, o que fez correr o boato de que Luxemburgo e a diretoria do time estavam fazendo corpo mole para a competição. No desabafo de ontem, quando terminou a maravilhosa peleja, Luxemburgo falou em linguagem cifrada, para todos os microfones, menos o da Globo. Disse que nunca quis boicotar nada, apenas pediu um pouco de profissionalismo, reclamando do poder de quem está fora do futebol e que vivem mandando em tudo. Luxemburgo é mestre do conflito. Suas entrevistas nunca são tranqüilas, é sempre um embate de palavras. E palavra foi o que não faltou ontem. Basta ver Ricardo Gomes falando de modo contundente para Dill, que entraria no lugar de Zinho. O jogo terminou nos pênaltis, com a vitória do Santos. Mas o resultado real e justo foi o empate de dois a dois.

VERSÕES - O lance mais incrível foi o primeiro gol do Flamengo. Junior Baiano chutou a falta e a bola caiu nos pés de Ibson, que esperava o biroço já com o pé torcido para desviá-la para o gol. Junior Baiano saiu comemorando, mas a certa altura ficou sozinho. Aí virou-se e viu Ibson sendo cumprimentado por todos. Houve então uma polêmica entre os comentaristas: a bola bateu no pé de Ibson, portanto o gol era de Junior; ou Ibson conscientemente colocou a bola para dentro do gol, o que lhe dava a autoria do feito. Todos deram sua opinião, até consultarem a fonte verdadeira, o próprio Ibson. E aí, a bola bateu em você ou você bateu na bola? As duas coisas, revelou, num insight supremo, o craque. Isso é o futebol: um desafio da percepção, pois trata-se de encaixar uma esfera em espaços retangulares, selecionar curvas e retas e brincar com a percepção alheia para poder vencer. Uma jogada filmada, repetida, vista por milhares, teve que ser debatida e só foi resolvida pela palavra. Futebol é uma arte quântica, com várias possibilidades de realidade. O bom é que o jogo foi transmitido pelo Luciano do Vale, o número 1, pela Record. Luciano faz de um zero a zero um espetáculo inesquecível. Imaginem o que fez no jogo de ontem. Não é só de dotes operísticos (da melhor ópera), mas suas ferramentas, como a repetição da mesma frase para definir melhor a emoção da jogada; sua vocação jornalística para focar o que é mais importante e pedir a opinião de todos os envolvidos; e seu incendiário entusiasmo que a tudo contamina, como o canto esperançoso de um pássaro que anuncia uma estação mais amena.

Nenhum comentário:

Postar um comentário