19 de agosto de 2004

HOUVE GUERRA, HOUVE MORTE, HOUVE SANGUE



Hoje respondo a maior parte das perguntas que formulei, impulsionado pela incredulidade de uma leitora sobre minhas análises históricas. Sempre fico impressionado com o que os professores não ensinam para os estudantes. Fiquei sabendo que professores de jornalismo dizem que a diferença entre texto de jornal e de revista é que o primeiro é feijão-com-arroz e o segundo tem que dourar a pílula. O primeiro é pão-pão-queijo-queijo e o segundo tem que ter nariz de cera, aquele início nada a ver que tanto cansa os leitores. Esse é um crime pedagógico altamente prejudicial ao futuro da imprensa. Mas vamos à História, que é um enigma nas salas de aula, graças à má fé, ao despreparo e às distorções de grosso calibre.

P - Por que e como Getúlio Vargas assumiu o poder em 1930?
R - Porque o governo da República tinha perdido contato com o país e governava sob férrea ditadura, impondo sua vontade contra as reivindicações populares e de algumas regiões. Havia marginalização geral de pessoas e estados. A pressão armada, via revolta militar e civil, foi violenta desde a renúncia de Deodoro em 1892. Três guerras marcaram os 40 anos da ditadura civil da Primeira República: a de 1893-95, a de 1923 e a de 1924-1927. Getúlio assumiu o poder ao fazer-se líder de uma reivindicação nacional por mudança. Presidente do estado gaúcho, Getúlio contou com a estratégia militar bem sucedida de Góis Monteiro, da liderança revolucionária de seu secretário de Justiça, Oswaldo Aranha, das tropas dissidentes do Exército e das forças estaduais de três estados sublevados (RS, Minas e Paraíba). Houve guerra, houve luta, houve sangue, houve morte. A guerra começou dia 3 de outubro. No dia 24, o presidente Washington Luis foi derrubado pela parte das Forças Armadas até então legalistas, que quiseram assumir o poder. Oswaldo Aranha não deixou. Embarcou num teco-teco e desceu no Rio de Janeiro para impor as condições. Podemos vê-lo alto, jovem, só e com um cigarro no canto da boca, pisando firme na capital da República, para falar com militares de alta patente. Eis um homem de coragem, Oswaldo Aranha, que tem um biógrafo respeitável, o brasilianista Stanley Hilton, autor de um livro obrigatório sobre esse grande personagem, que foi o primeiro secretário geral da ONU e que viabilizou o estado de Israel (sim, ele era getulista, que dizem ser anti-semita, não é mesmo?).

P - Por que Getúlio enfrentou a guerra contra integralistas, comunistas e militares revolucionários nos anos 30?
R - Getulio tornou-se chefe do governo provisório e enfrentou cerrada oposição, a começar por São Paulo, que declarou guerra dois anos depois. Getúlio venceu a luta e conseguiu pacificar o estado. Os comunistas tentaram dar o golpe em 1935, mas o esquema foi mal planejado e o tiro saiu pela culatra. Os envolvidos foram deportados (um deles morreu torturado) e o líder da revolta, Luiz Carlos Prestes, ficou preso por dez anos. Prestes só foi solto em 1945, quando saiu candidato vitorioso ao senado, num mandato que durou apenas até 1947, quando seu partido, o Comunista, foi colocado fora da lei pela presidência do Marechal Eurico Gaspar Dutra. Os integralistas de Plínio Salgado sentiram-se fortes com seu sucesso popular (existiam um milhão de militantes integralistas no país, usando camisa verde e levantando o braço na saudação de inspiração nazista anauê). Cercaram e tirotearam o Palácio. Alzira Vargas (autora do belo livro Getulio Vargas, meu pai) pegou em armas para defender o governo. Os integralistas também foram derrotados.

P - Por que instaurou o Estado Novo em 1937?
R - Getúlio prometeu eleições, mas deu o golpe de estado em novembro de 1937 instaurando o Estado Novo, com Congresso fechado e imprensa censurada. Coincidiu com a época da guerra, desencadeada em 1939, a crise das grandes potências e o ocaso do liberalismo em todo o mundo. Declarou guerra às potências do Eixo (Alemanha e Japão) pressionado pelas manifestações populares depois que navios mercantes brasileiros foram afundados pela marinha alemã. A FEB, Força Expedicionário Brasileira, foi lutar na Europa e voltou coberta de glórias, sendo sua mais famosa batalha a de Monte Castelo (que Tabajara Ruas quer filmar com o sugestivo título A cobra vai fumar, slogan dos pracinhas da FEB; o roteiro está pronto, onde está o patrocínio para nosso primeiro grande filme de guerra?). Os motivos do golpe do Estado Novo, segundo os inimigos de Getulio, são de que esse sempre tinha sido seu objetivo, já que era mesmo um ditador. Estudei pouco o Estado Novo, mas duvido dessa tese. O golpe foi dado por um chefe de Estado pressionado pelas tentativas de desestabilização. Nada justifica o fechamento do regime, mas durante o Estado Novo Getulio viabilizou o parque industrial por meio da Usina de Volta Redonda, transformou o salário dos trabalhadores para níveis idênticos ao dos europeus, pagou toda a dívida externa e o Brasil ganhou prestígio internacional, sendo bajulado por todas as grandes potências. Não é pouco. Seu chefe de polícia, Felinto Muller, é o personagem mais polêmico: relatos (e documentos, acredito) confirmam que ele exercia tremenda censura à imprensa, prendia, matava e torturava. No Estado Novo, o Exército tornou-se enfim unido e foi a principal base de apoio do regime. Eis um período riquíssimo para ser decifrado pelos historiadores, longe da campanha de difamações que envolve o ex-presidente, que era apoiado pela população, tanto é que voltou ao poder em 1950 pelo voto direto.

P - Por que foi derrubado em 1945?
R - Porque havia uma nova ordem internacional e as forças armadas brasileiras tinham sido cooptadas para a divisão que mais tarde seria conhecida como Guerra Fria. O militar nacionalista deu lugar ao militar pragmático, que achava necessária fechar com a parte dita democrática das facções que se digladiavam no mundo. Foi também um golpe militar que derrubou Getulio, mas as eleições diretas saíram, sendo eleito o candidato getulista, Dutra, que governou até 1950. A direita, que tinha se assanhado com a queda de Getulio, ficou furiosa.

P - Como conseguiu voltar ao poder em 1950?
R - Toda a imprensa estava contra ele, mas não o povo. Era um uivo que se ouvia em todo o país, me disse Samuel Wainer, o uivo era a palavra Getúlio gritada pela população, que acorria em massa ao refúgio do presidente em São Borja. Ele voltará, escreveu Samuel Wainer numa reportagem dos Diários Associados. Quando venceu as eleições, Getulio apelidou Samuel de Profeta e garantiu que ele montasse a Ultima Hora para ter uma parte da imprensa enfim a seu favor.

RETORNO - Depois eu continuo. Ninguém faz perguntas? O curso vai acabar por aqui, desse jeito. O título desta edição é uma provocação aos que sustentam a tese de que no Brasil tudo se faz da boca para fora e que nunca houve guerra. Os combatentes que tombaram merecem que os historiadores contem outra História.

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