27 de maio de 2004

PASSEIO POLAR NA USP

Esse vento gelado veio lá da fronteira, tenho certeza. Bateu na grama impecável da universidade debaixo de um sol de inverno precoce. Sentei um pouco na hora do almoço na imponente e renovada Praça do Relógio. Ao contrário do que diz Honório no meu romance, lá estavam os quero-queros. Agitados, como sempre. Talvez confusos com tão vasto território parecido com o pampa. Davam parafusos no ar e ecoavam seus gritos assustadores. Refugiei-me, com intervalo numa rápida passagem pelo Museu de Arte Contemporânea, em livrarias e sebos do campus. Lá folheei preciosidades.

SANTO QUIXOTE - O que mais me chamou a atenção no MAC foi uma obra de Regina Silveira. É um pequeno boneco de argila feito por um artesão, de lança em riste, sobre pedestal em preto e branco. Desse conjunto sai uma "sombra" composta por material preto (talvez madeira, talvez plástico). Essa sombra "projeta-se" e forma um Quixote muito espichado, que se desdobra em duas paredes em cotovelo. Do artesanato popular a artista vislumbra o personagem central do nascimento do romance. A figuração do Quixote, que tem em um livro de Portinari sobre o assunto, exposto na portaria, uma contribuição excepcional pela originalidade e radicalidade de traços e cores, é uma referência da modernidade, essa invenção baudelariana. É Jacques Le Goff, com seu livro sobre Memória e História, por onde passeei os olhos na livraria da Edusp localizada na faculdade de História, que explica a criação da modernidade por Baudelaire. Estamos acostumados a usar as palavras sem verificar-lhes direito o sentido. A modernidade nada tem a ver com a atual febre modernosa ou pós, mas implica um resgate do que é permanente em atividades que não eram, aparentemente, vocacionadas para isso (escrever num blog, por exemplo, podemos dizer agora) . Mais não digo porque fui, nesse passeio, um inseto-leitor, que pousa brevemente o olhar sobre folhas de revelação. Aprender não é ficar sabendo uma vez algo para sempre. Aprender é uma coisa diária. Um dia não passa da reprodução de uma vida. Acordamos ignorantes e queremos apenas nosso café com jornal. Ao meio dia, nos achamos sábios, mas não passamos de adolescentes com pretensões filosóficas. À tarde, descobrimos que nada sabemos e então mergulhamos um pouco mais fundo na sabedoria. Só descobrimos alguma coisa à noite, mas aí estamos cansados e vamos dormir. Todo dia é dia de aprender alguma coisa, inclusive o que você aprendeu ontem.

COROADOS - Nos sebos que existem numa galeria ao lado do MAC folheio obras impressionantes. Uma é sobre os índios coroados no Rio Grande do Sul, que, segundo o autor (do século 19), gritavam a palavra "bugre" quando viam os europeus chegando. Receberam esse apelido, o que os diferenciava dos guaranis, coisa que eu ignorava totalmente. Sempre achei que os bugres eram todos os índios. Nunca tinha ouvido falar também dos coroados. Ouvi falar dos charruas e minuanos e sobre esse assunto Delmar Marques guarda um livro na gaveta ainda sem editor. Delmar se acha gaúcho porque foi criado numa fazenda naquele areal de Rio Grande, no litoral. Mas Rio Grande, Pelotas e Portinho são apenas cidades periféricas ao pampa. Vi esses dias um mapa do pampa que pegava quase todo o Rio Grande do Sul, inclusive a montanhosa Santa Maria. Como também nada entendo de geografia, desconfiei. Para chatear, digo que o pampa é só de Rosário do Sul a Uruguaiana. Só mesmo para chatear, já que a gauchada faz a maior questão das raízes. Como nasci lá, naquele horizonte estaqueado, e faço parte dele como qualquer pedra de rio, posso buchinchear um pouco. Mas falava de livros antigos. Edições primorosas de Dostoiewski, volumes da Enciclopédia Britânica, maravilhas daquela coleção Itatiaia-USP, da qual possuo inúmeros exemplares, tudo super preservado e com preços convidativos.

DE CHIRICO - Não existe lugar mais estimulante do que uma universidade, onde você pode comprar uma cocada fresquinha numa de suas lanchonetes e ver uma obra de De Chirico, Enigma de um dia, que foi adquirido pelo Oswald de Andrade nos anos 20 e hoje faz parte do acervo do MAC. Esse é um quadro impressionante. O vazio da geografia, o anti-monumento, pois sobre o pedestal existe a figura de um homem de cabeça baixa, o vento inexistente que sopra fellinianamente nos desvãos daquelas paredes. É uma síntese do tempo que habitamos. Nada nos consola, anti-heróis de nós mesmos, que contamos apenas, ao longe, com a presença indiferente de duas pessoas estáticas. Sobre esse estrado sem sentido, refletimos sobre a aparência das coisas e fazemos parte de um deserto disfarçado de civilização. A aparente simplicidade desse trabalho nos carrega para uma nostalgia do que poderia ter sido, a praça cheia, o dia da vitória verdadeira, a solidariedade em outro tipo de pedestal, sobre o qual brincariam crianças e pássaros. Os gritos dos quero-queros continuam ecoando na USP. Os pássaros também brincam. Não ficam o tempo todo, como querem os documentários pragmáticos da TV, cuidando da prole ou da sobrevivência. Vivem, simplesmente, sobrevoando o mistério de estarmos aqui, sem nada que nos ampare a não ser a vontade de viver mais um pouco.

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