20 de março de 2004

O ESPLENDOR DE CADA GERAÇÃO

A evolução não existe: cada pessoa parte do zero em direção ao seu destino. O que temos no acervo cultural é a soma do esplendor de cada geração. Uma jamais comparável a outra, formando, cada uma, realidades incomensuráveis. O que a humanidade produz circunscrita nos limites do tempo atinge ciclicamente o infinito. Nesse estágio, não existe superação à vista. É momento único, que encanta o futuro. É o que acontece com Candeia, mestre da música popular e nome, claro, fora do circuito atual da mediocridade midiática no poder.

DIA DE GRAÇA - O disco maior da música brasileira é Axé, de Antonio Candeia. Ali estão reunidas as linhagens mais poderosas do que o povo brasileiro já produziu. Com uma diferença fundamental: tudo, desde as músicas baseadas em bordões de rua, como Peixeiro Granfino (Bretas-Candeia) , passando pelos temas clássicos como a traição conjugal, até a sofisticada obra-prima Ao povo em forma de arte (Wilson Moreira e Nei Lopes), manifesta-se a denúncia, a conscientização, a indignação embalada no talento de mestre. Candeia usa a expressão do povo sofrido para apontar-lhe um rumo. Em Dia de graça,
ele chama a atenção para a ilusão do Carnaval, a necessidade de o povo se unir e se fortalecer para superar a miséria. “Aí, então, jamais tu voltarás ao barracão”. Com melodias inesquecíveis e letras primorosas como Pintura sem arte, ou o inacreditável Ouro desça do seu trono (com Paulo Portela), o mestre deixa um legado de grandeza sem sair da sua roda, sem abandonar o seu mundo, sem fazer a mínima concessão. Mas ele não se submete ao panfleto, apesar de bater o disco todo na injustiça. Por isso o disco desemboca no deboche total, no magnífico Beberrão (Aniceto do Império-Mulequinho), que tem rimas maravilhosas, como pode-se ouvir na sucessão de frases que pontuam o bordão “você já começa a beber”: no domingo de manhã/ com Manuel Bam-bam-bam/ não estás com a cuca sã/ vai te deitar no divã. Correndo junto, existem ainda outras jóias, como Vivo isolado do mundo (Alcides), que diz: “eu vivia/isolado do mundo/ eu era um vaganbundo/ sem ter um amor/ hoje em dia/ eu me regenerei/ sou um chefe de família/ com a mulher que eu amei”. E ainda Ouço uma voz (sobre texto de Nelson Amorim), Vem amenizar (com Waldir 59), Mil réis, Nova escola, O invocado (Casquinha), Maria Madalena da Portela (Aniceto do Império). Peça para ouvir Candeia. Ouça Candeia. O disco está também reproduzido na coleção Mestres da MPB, da Warner, projeto de Carlos Alberto Sion e Tárik de Souza e direção técnica de Sérgio Bittencourt. Está na minha casa há muitos anos. Vivo desse tipo de obra, dessa inspiração que nos alimenta, dessa base que segura o Brasil que jamais entenderemos o quanto é imenso.

QUILOMBO - A genial música que citei acima como obra-prima tem letra do professor Nei Lopes, compositor de primeiro time, intelectual do Brasil superior: “Quilombo/ pesquisou suas raízes/ dos momentos mais felizes/ da sua história singular/ e hoje/ vem mostrar sua pesquisa/ na ocasião precisa/ em forma de arte popular/ há mais/ há mais de 40 mil anos atrás...” Todo desfile de carnaval deveria ter uma representação dessa música. Já a imaginei de mil formas. É absolutamente impressionante. Quem não ouvir essa música em poucos dias me deve uma. Um pequeno perfil do grande xará, tirado da rede (http://www.samba-choro.com.br/artistas/neilopes): “Nei Lopes é autor e intérprete de música popular, nasceu no subúrbio de Irajá, Rio de Janeiro, RJ, em 9 de maio de 1942. Bacharel pela Faculdade Nacional de Direito da antiga Universidade do Brasil, no início dos anos 70 abandonou a recém-iniciada carreira de advogado para dedicar-se à música e à literatura. Compositor profissional desde 1972, notabilizou-se principalmente pela parceria com Wilson Moreira e pela obra gravada por quase todos os grandes intérpretes do samba tradicional. É escritor de vasta obra toda centrada na temática afro-brasileira e compreendendo ensaios como "O Samba, na Realidade" (1981), "Bantos, Malês e Identidade Negra" (1988), "O Negro no Rio de Janeiro e Sua Tradição Musical" (1992), "Zé Kéti, O Samba Sem Senhor" (2000), "Logunedé; santo menino que velho respeita"(2000), além de um "Dicionário Banto do Brasil" (1996) e um volume de poemas "Incursões sobre a Pele" , também de 1996, entre outras publicações. Desde 1995, Nei trabalha na elaboração da "Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana", sua obra mais ambiciosa, a qual contempla centenas de verbetes sobre o universo do samba e do choro.

QUINTANA PARA SEMPRE - Candeia, Nei Lopes: insuperáveis. E geração aqui nada tem a ver com idade. Tem a ver com convívio, com o verbo compartilhar: repartir o privilégio de termos, numa mesma época, a nação, a terra, a música, a poesia. Sem isso, nada somos. Sobre evolução, lembro Mario Quintana. Ele tinha um baú cheio de poemas. Tiraram apenas os sonetos para fazer seu primeiro livro. Depois, desencavaram os de verso livre. Os críticos tiveram uma iluminação: ele evoluiu! Ao que o insuperável poeta respondeu: “Jamais evoluí. Sempre fui eu mesmo.”

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