28 de junho de 2025

QUATRO ESTAÇÕES

 Nei Duclós 


No inverno ficamos mais velhos

A idade não avança na primavera 

Depois o verão queima todas as células

Mas chega o outono e você se recupera


Não que remoce

Ou se acostume com a perda 

Mas o tempo repõe o que mais queres

Tua fome de amor por uma incerta princesa


Nei Duclós

CORRERIA

 Nei Duclós 


Admiro quem se movimenta

Anda corre pula dança 

Eu também estive no front

Sem tanta intensidade, só para o gasto

Hoje observo os contemporâneos 


No fundo, passei a maior parte do tempo 

Sem ter o que fazer com meu corpo

Sonhei, mas isso todos são capazes

Fiquei, quando me diziam vamos


Ao me verem deitado repassavam encargos

Que eu cumpria a caro custo

O que me empolgava eram os estudos 

E os versos na máquina Smith Corona


A literatura foi minha maratona


Nei Duclós

27 de junho de 2025

JUNTOS

 Nei Duclós 


Às vezes falo sozinho

Rompo o silêncio, por certo

  É quando digo a verdade

E não quero que contestem


Já me basta quem tece

Armadilhas da conversa 

Prefiro ser o que penso 

E que ninguém esclarece


Assim mesmo tem assunto

Que eu não consigo consenso

Peço a palavra insurgente

E brigo por um aparte


Já quiseram me internar

Mas fácil me recomponho

 É só uma trova, paisano

Segue a roda e estamos juntos 


Nei Duclós

26 de junho de 2025

MADEIRA

 Nei Duclós 


Falo na madrugada para o nada

Ruas vazias, janelas fechadas

Inútil boemia de bêbada sorte

Sou o último poeta desse pobre porre


Falo lesado pelo destino incerto

Quando veio minha vez tudo estava morto

Quis saber do mistério mas ele também se cala


Resta a ilusão de que uma hora amanhece

Aí quem sabe a vida acontece

E desperta o que tinha de múltiplas vozes

Enterradas no peito de madeira nobre


Nei Duclós

25 de junho de 2025

PERDA

 Nei Duclós 


Já não te enxergo mais, corpo do avesso

De tão exposta perdeste a forma 

Eras cascata em tarde no outono

Hoje és a flor escondida no ermo


Aperto os olhos e nada vejo

Apenas ouço teu passo de seda

Assediando o poema, que cego te perde


Nei Duclós

24 de junho de 2025

INVERNO

 Nei Duclós 


Tua lembrança aquece o quarto frio

Na solidão o inverno é o coração 

Sem esperança de um dia retornar

À dança de salão onde fui te namorar


A memória é uma estação de esqui  

Lá eu deslizo para bem longe de ti

Aceno com meu gorro de lã gris

Mas a neve te leva para não me ver


Atiço a brasa que está quase por morrer

A coberta gasta não consegue segurar

O telefone tinha o hábito de tocar 

Mas os teus dedos escorregam para o mar


Nei Duclós

22 de junho de 2025

VALOR

 Nei Duclós 


Toda obra joguei na calçada 

O tempo devorou seu valor

Versos sem apoio

Poemas furta cor

E tu distante porque viste

No primeiro instante 

O que eu exibia fingindo amor


Nei Duclós

20 de junho de 2025

DEMORA

 Nei Duclós 


Fiquei preocupado hoje

Custou a amanhecer

Pensei: e se a noite decidir ficar?

Não a noite de estrelas e luar

Ou a nublada com sua dose invernal

Mas a noite que se assenhora da manhã

E demora em treva temporã?


Essa escuridão sem a origem crepuscular

Invasão que devora o dia ainda no ventre

Assassina da promessa da claridade urgente

Estação do amor conosco sempre 


Temos fome de café com pão 

Que é o sol, nossa ração diária


Não inventa, poesia, de nos assustar 

Não tenho saúde para suportar a dor

De esperar a alvorada antes de morrer


Nei Duclós

17 de junho de 2025

OCULTA

 Nei Duclós 


O grande amor é um relâmpago 

Ilumina por um segundo

Depois te joga no escuro 


Não tem vocação de ficar junto

Não vive para repetir o escândalo

De aparecer de repente com estrago


Sua meta é  a fuga

Não se responsabiliza pelo que abandona

Acha muito a sensação que dá de graça 

Por isso é escassa, se vinga

De sua natureza bruta


Volta amor, dirás sozinho

Enquanto ela ri oculta em tua fantasia 


Nei Duclós

CREPÚSCULO

 Nei Duclós 


Já escrevi sobre tudo 

Praia deserta, calça de veludo 

Amor partido, perda de rumo


Sobrevivi, poeta de água doce 

Veterano precoce

Porre de aventura


Sei que perdi, queda no abismo

Mas vitória é para os fracos, gozo iludido

Vale a lucidez, crepúsculo de vidro


Nei Duclós

10 de junho de 2025

VIDRO

 Nei Duclós 


Não lembro deste corpo de vidro

Que quebra ao primeiro vento

Este poema partido

Em trens de longo trajeto


Não lembro de ter esquecido

O momento mais ferido

Herança no eterno presente

A pulsar como um espinho


Sou o que fica para sempre 

Pastor de estranho rebanho

Na montanha bebo a água

Que forma o esquecimento 


Nei Duclós

2 de junho de 2025

RETORNO

 Nei Duclós 


Não tenho mais o retorno

Não perguntam, nem respondem

Continuam ocupados

Sou tratado como estranho

Celebram, enquanto me excluem

Desse bizarro mercado


Já fiz parte dessa obra

Quando me dava importância

Agora chegou minha vez

De ser cachorro sarnento


Cumprimento para o vazio

Nem mesmo o vento me acena 

E se acaso apareço 

Está vivo, se surpreendem

Num alvoroço de perdas


Nunca fui muito chegado

Recolhido ao próprio canto

Fui alguém quando chamado

Mas nunca fiz muito esforço


Por isso passo ao largo

Fingindo que não me importo

Mas isso dói em silêncio 

De um veterano da guerra


Hoje quem bate na porta

São as lembranças de um tempo

Que não me sai da memória 

Vivi porque Deus permite

Venci porque fui História

Não mereço ter a sorte

Do bem querer que acompanha

Quem é antigo e apanha

Da vida que não dá trégua 


Nei Duclós

1 de junho de 2025

DUAS ALMAS

 Nei Duclós 


Procuras por poesia 

Por isso evitas meus insultos

Mesmo que não busques, ao ficar decides

compreender o verso elaborado bruto

Que gera ametista, tua leitura


Assim vamos, duas almas perdidas

Uma que verte areia na paisagem dos sentidos

Outra que extrai água de camadas profundas

Tua epifania


 Nei Duclós