16 de setembro de 2024

RELENTO

 Nei Duclós 


Dormimos ao relento de um amor no começo. Complicado jogo de cobertas. Acordamos em alto mar, mortos de espanto.


Domar a vontade de perder-me. Mergulhar na luz que te desenha


Venha dizer, maçã e gerânio. Sopro macio, que cruza o oceano.


Nei Duclós

ESCUTO FLORES

 Nei Duclós 


Escuto flores ocultas na estação

Esperam passar o fogo nos jardins

Sabem que morrem se emergirem inseguras 

No mundo cultivado pela dor


Mas não suspiram nem gemem na opressão 

Das grutas sobre as nuvens invisíveis 

As que tardam a chuva


Dão voz ao vento com tontos perfumes

Convidam o céu no rumo do futuro

Possuem as palavras há tempos esquecidas

Paz, prazer, reflexão e vida


Só se concentram no frágil existir 

E isso é música composta na mudez

Parece estranho mas é assim que funciona

Mesmo na loucura e a insensatez


Eu ouço porque lembro como era

Na minha infância a doce primavera

E hoje na idade adulta ainda procuro 

onde estarão no tempo terminal


Elas se situam no meu pobre coração

Firmes no sonho apesar de todo o mal


Nei Duclós

DECISÃO

 Nei Duclós 


O que pode a palavra diante do assassinato?

O que pode o verso sem nenhum aparato

A não ser o poema e seu passo em falso?

O que pode o amor diante da fraude?

O poeta em adiantada idade?


O que pode a verdade se não acontece

Na mente do próximo e na vida afora?

O que pode o sonho em meio à catástrofe?


O que pode a oração sem a fé que a sustente?

Pobre coração que no tempo sofre

Quem virá em socorro se meu gesto tarda?


Devo uma resposta e para isso preparo

Não uma guerra mas algo mais forte

Minha decisão de não ser covarde


Nei Duclós

15 de setembro de 2024

ORAÇÃO DOS MELHORES DIAS

Nei Duclós 


Que o Senhor nos proteja da tristeza

Nos proteja do pânico 

Da desesperança 

Nos proteja do remorso e da raiva


Que nossa fé não seja credulidade

Que o amor não ceda à indiferença 

Que o crime se afaste

Que a vida se transforme 

Que o hábito não vire rotina

Que possamos exercer a arte

E viver da excelência do nosso ofício

E que nossas ações sejam livres e solidárias


Que o desejo não nos transtorne

Que o sonho nos ilumine

Que os dias sejam nosso avanço 

Em direção ao humano destino da salvação 


Assim seja


Nei Duclós

13 de setembro de 2024

SUMIDA

 Nei Duclós 


Faz o oposto do que digo

faz por gosto, faz por birra

me condena a ver navios

Some quando mais preciso


Nei Duclós

12 de setembro de 2024

VIVO

 Nei Duclós 


Vivo porque resisto e é bom

Porque tenho o dom

De ficar vivo


Da fase terminal desisto

Não quero dar o exemplo do final


Não que escolha o riso 

Como antídoto da dor

Todo drama é comédia 


Vibro na trama desta peça 

Sem valor

O que parece acabar começa 


Vivo porque a vida é um sopro

Como no tango Volver


Nei Duclós



PRESENÇA

 Nei Duclós 


Chegou sem pedir licença 

Com os ventos da manhã 

E ficou para sempre 


Não é apenas mulher

É um tormento

Quem pode com tua presença?


Passas a limpo

Meu pobre universo


Nei Duclós

PRISÃO

 Nei Duclós 


Ela me ensinou a cantar

A escrever versos de amor

A dizer, mesmo que doa

A sonhar sem ter vergonha


Depois foi-se embora

Pássara migratória 

Deixando-me só 

Com as lições aprendidas


O que faço com o que sei?

Aluno expulso da escola

Não há serventia

Para quem perde alguém 


Uso na poesia

O que ficou de refém 

Esse coração condenado

À prisão da liberdade


Nada possuo

Além da verdade


Nei Duclós

8 de setembro de 2024

DOMÍNIO

 Nei Duclós 


Não pense mais em mim, desista

Sei que é dispensável este aviso 

Detonamos a relação, deu tudo errado

A idade me expulsou do paraíso 


Não pense que direi meu endereço

Para vires me consolar na mocidade

Dar tapinha no ombro com a mão cínica


Tenho dignidade, fico na minha

Aprendi a dominar a tempestade 


Nei Duclós

TODA TROVA

 Nei Duclós 


Todo poema é de amor

Todo verso beija a boca

Toda dor vem do deserto

O sol é meu professor 


Navego em campo aberto

No corpo nasce uma flor

Amansei todas as feras

Antes de pedir-te a mão 


Escrever não é a meta

Mas viver ao teu comando

Planto trigo onde há pedras

E só canto sem motivo


Não é fácil ser cativo

Da mulher ou vocação 

Ao mesmo tempo ser livre

Escolho o que molha o chão 


Nasci num sopro de brisa

Nas sombras de uma floresta

Fujo do que não presta

Toda trova tem valor


Nei Duclós

TOBOGÃ

 Nei Duclós 


Fiz um monte de loucuras 

Não sentia dor nenhuma

A idade me curou:

Adicionei uma artrite 


Dormi em delegacia

Cabine de caminhão 

Desviei do meu caminho

Por obra da poesia 


Diziam corte o cabelo

Estavam com a razão 

Hoje corto gurizinho

Sou candidato à calvície 


Do topo para a planície 

A vida é um tobogã 

Abracei dura rotina 

Por sorte sobrevivi


Nei Duclós

3 de setembro de 2024

TORTO

 Nei Duclós 


Se o poema nasce torto

Por força da escuridão 

Rebento sem nada em torno 

Faca cega, mudo esporro 


Ele depende da sorte

De ter sol em sua espera

Que tenha leste no norte


Que encante, mesmo ferido

O parto o torna mais forte

A vida tem perna curta

Furta cor, um pobre sopro


Dizem não sobrevive

Não contam com o poeta 

Pé quebrado, intacto corpo


Nei Duclós