5 de maio de 2019

A SORTE E O DESTINO


Nei Duclós

O cinema subverte a Criação, pois não a imita, antes a substitui. Fruto da técnica, a Sétima Arte pode encarnar a origem divina a inventar ao mundo sem a intermediação da divindade. Em Um Homem de Sorte (Billie August, 2018) o cinema oferece a paisagem e suas forças – o vento, as ondas – para representar a tradição que condena o protagonista, um jovem estudante de engenharia (interpretado por Esben Smed,) , ao ostracismo. Ateu numa família cristã de patriarca rigoroso e impiedoso, o garoto gênio dependura-se em sua formação escolar e autodidata para provar que pode atirar pedras em Cristoe expulsar o barulho dos dinos das igrejas em sua cabeça. Conta para isso com o talento, a inteligência e a sorte, que por um período confunde-se com a Fortuna, deusa caprichosa de rápida ascensão e queda radical, conforme o destino de cada um.

O destino de Petras Andreas é ter as portas escancaradas para seus projetos e depois jogá-las no lixo, não por um capricho mas por uma contingência: não consegue escapar de suas raízes e a elas torna-se fiel até o desfecho fatal. Assim, perde a chance de mudar a realidade do seu país, a Dinamarca, capturando energia dos ventos e das ondas e mudando a localização de um porto comercial, que faria concorrência a outros portos poderosos da Europa. O tempo lhe dará razão, mas para ele é tarde demais. Sua oportunidade de reinventar o mundo por meio da técnica é colhida pelo lodaçal da aristocracia política, financeira e intelectual dos que detém o poder e o exercem para humilhar a cidadania.

Joga fora, por teimosia, sua entrada na rica família de financistas judaicos e acaba também abandonando os filhos que teve com a filha de um pastor. Recolhido no ermo, é visitado por sua ex-noiva, a bela Jacobe (a talentosa atriz Katrine Greis-Rosenthal), que o perdoa e agradece a oportunidade de tê-lo conhecido por se afastar de sua condição de herdeira e abraçar a causa social num orfanato. No fim ele cumpriu sua missão, mas foi tragado por ela. Sua ruína foi subverter a criação, querendo transformar seu país numa potência econômica. Atraído para o abismo do fracasso, onde só a solidão poderá significar liberdade, ele experimenta o gosto amargo do criador apartado de sua obra. É como o cinema, que domina a história, o assunto, a maneira de apresentá-la, e é esquecido em função do que mostra ao espectador. Todos veem a trama, e a encaram como se fosse real, mas não a pura verdade, que este filme, como todos os outros, é sobre cinema, pois sem ele nada disso existiria. Ficaríamos com nossa imaginação, mas não com a prova de que é possível transformar algumas vidas do passado numa soberba manifestação da arte maior que a técnica nos proporciona pela mão dos cineastas imprescindíveis.





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