10 de maio de 2017

A FOME: POLÍTICA E CONTINGÊNCIA

Nei Duclós

Com 14 milhões de desempregados e atrasos nos salários, o Brasil continua marcando forte no jogo da fome, mesmo que essa pauta não esteja na moda por aqui. Assunto polêmico, a fome oué fruto da incompetência dos gestores da economia ou serve de estratégia política a partir de contingências.

O Brasil de tanta miséria é o “celeiro do mundo” (jargão da época da ditadura de Delfim Neto), exporta toneladas de transgênicos para alimentar os porcos da China, num desvirtuamento das iniciativas antigas a favor da expansão da lavoura, pautadas pela necessidade e que acabou virando moeda política. E entope o mundo de carne ruim enquanto aqui o pessoal come farinha. Éa a mistura de situação endêmica com ambição nacional mal gerenciada. fundada na tirania e na corrupção. Ou simplesmente pela indiferença e a doença crônica de acumular riquezas a custa das populações.

Com a chamada revolução verde dos anos 50, o uso de defensivos químicos para combater a pragas envenenando os alimentos, disseminou-se a ideia de que isso iria acabar com a fome do mundo, pois era possível aumentar a produtividade e o território arável. Mas foi apenas uma forma de gerar mais commodities para a especulação. Ou a produção de alimentos serve para alimentar a população do país ou não tem divisa que se justifique. Ainda mais quando sabemos para onde vai o dólar conseguido na produção recorde. Foi a segunda resposta americana à escassez de alimentos, sendo a primeira a política de Roosevelt nos anos 30, quando enfrentou o desespero da população que procurava alternativas para a pobreza.

VENEZUELA E UCRÂNIA

Tivemos dois paladinos contra a fome. Josué de Castro e Betinho. Mas basta uma cena atual da seca ou da violência na periferia ou das catástrofes desnaturadas para vermos de novo o espectro rondando. Agora o Brasil tem companhia na fronteira. “Não tem comida lá”, diz a venezuelana que se bandeou para o Brasil junto com milhares de conterrâneos na fronteira com a Rondônia. O regime de Maduro é metido a comunista mas é apenas incompetente. Acha que fazer justiça social é perseguir empresário e criminalizar o empreendedorismo. Sem arrecadação vinda de atividades produtivas, não há o que distribuir. Uma lição que os ex-radicais chineses aprenderam na prática, pressionados pelos seu 1,4 bilhão de habitantes. Mas Maduro é verde nessas práticas e acha que sacudir o pau para a massa o torna um líder.

Os comunistas de verdade (russos e europeus) aprenderam na prática a lidar com a fome. A Europa precisou enviar milhões de pessoas para países distantes para enfrentar a fome no século 19 e só se resolveu depois de pilhar o mundo completamente com a revolução industrial e se estabelecer como democracia social, situação que está fazendo água com a invasão africana. Na experiência bolchevique, Lênin montou um sistema rural baseado na pequena propriedade para evitar a escassez e a penúria, dentro dos seus planos quinquenais. Tudo foi destruído pelo sucessor Stalin e as fracassadas fazendas coletivas. Ao mesmo tempo, Stalin, na sua política de expansão e conquista, provocou a fome na Ucrânia para submeter o país ao regime. Vem daí a fama de comunista comer criancinha pois a fome de massa na Ucrânia levou a extremos que nem é bom falar.

JACK LONDON

Leio A Filha da Neve, de Jack London, personagem que é a filha do grande empreiteiro, megacomerciante do Alasca, monopolista e ladino, que provoca a migração forçada para enfrentar a escassez de víveres, ao mesmo tempo que especula com ela. Trata-se de uma contingência da época (final do século 19) num lugar de desbravadores e mineradores que acorriam em massa para prospectar ouro e outras oportunidades. Era muita boca para alimentar e a solução foi colocar todo mundo em navios e despachá-los de volta para os Estados Unidos. Assim sobrava comida para quem ficava, já que os recursos eram pobres num território dominado pelo inverno.

O livro é magnífico, uma aula de narrativa daquele que foi o mais bem sucedido escritor do seu tempo. Apesar das maledicências (o texto é traduzido por Monteiro Lobato), ele coloca na roda grandes debates. Além da fome, a questão racial e o sentimento de superioridade dos saxões – junto com a crítica a ela, tudo ao mesmo tempo.

Fui ler alguma coisa sobre o livro e lá veio a velha cantilena de que London era racista e tenta provar a superioridade branca, o que é mentira, pois essa teoria, que é colocada no livro, também é contestada por um personagem. E os seus índios do Alasca são magníficos personagens. Em London temos a excelência da prosa, do romance, com cenas vivas e gente que salta aos olhos. Uma bela alternativa para a pobreza visual e artística da TV e a monotonia das redes sociais. Coisas que geram fome de qualidade, numa época em que facínoras desviam bilhões em joalherias e obras de arte fajutas e o corpo de balé do Municipal, junto com a orquestra, sem receber há meses, se apresenta na rua como protesto.

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