26 de novembro de 2015

SOMOS O QUE NOS TRANSCENDE



Alguns textos de Miguel Duclós me desafiam nesta seleta – semente do próximo livro com sua obra filosófica – como este que aborda os universais, um tema complexo que faz parte da história da Filosofia desde Platão. Mas relendo alguns trechos noto novamente a clareza com que Miguel aborda o assunto, num trabalho avaliado pelos eruditos da USP. Como nos identificar como humanos?

Aprendi na História que a Idade Média não é a época das sombras, mas a que deu as bases para o Renascimento e sem dúvida a retomada do pensamento grego é um dos pilares desse acontecimento. Nada somos sem a memória. Nada inventamos do nada. No meu caso, e de muitos outros, entender um pouco de filosofia passa pela obra autoral de Miguel Lobato Duclós (1978-2015), filósofo por vocação e formação, que nos deixou imenso e rico legado.

Obrigado por essa herança, filho querido. Não ameniza a dor, mas nos faz companhia nesta vida que piorou muito sem tua presença amorosa e esclarecedora.

http://www.consciencia.org/pedro_abelardo.shtml

“O PROBLEMA DOS UNIVERSAIS EM PEDRO ABELARDO”

MIGUEL DUCLÓS

Trabalho Originalmente Apresentado para a FFLCH/USP

"Reflitamos primeiramente a respeito da causa comum. Cada um dos homens, distintos uns dos outros, embora difiram tanto pelas próprias essências quanto pelas formas – como lembramos acima ao investigarmos a física da coisa – se reúnem naquilo que são homens" (ABELARDO, Lógica Para Principiantes, pg.61)

1 – Escopo do trabalho

O problema que se coloca nesse trecho resume a temática da querela dos Universais, discussão central na filosofia medieval, da qual se ocuparam diversos autores além de Abelardo num grande período de tempo. Trataremos aqui, de forma compacta, de alguns aspectos dos universais e da visão de Abelardo sobre o tema. A questão dos universais é primeiramente enunciada a partir da Isagoge de Porfírio. Isagoge é o termo grego para "introdução". Trata-se de uma introdução às categorias de Aristóteles, que como o filósofo mais importante e de maior alcance, era objeto constante de comentários, debates e glosas. Averróis, por exemplo, era conhecido como O comentador e escreveu dezenas de obras sobre o filósofo. Porém ele é de uma geração posterior a Abelardo, viveu entre 1126 e 1198, enquanto Abelardo viveu entre 1079 e 1142. Nesse período de tempo a obra de Aristóteles se difundiu consideravelmente. A geração de Abelardo conhecia Aristóteles principalmente através das traduções de Boécio para o latim de duas únicas obras, referentes ao corpo da lógica no sistema: Categorias e De Interpretatione. Estas, juntamente com outros cinco textos (além de Isagoge, De syllogismo categórico, De syllogismo hypothetico, De diffèrentiis topicis and De divisione do próprio Boécio) são as fontes primárias da lógica de Abelardo. Abelardo sabia muito pouco grego, e, não obstante fazer breves referências a outros trabalhos como os Argumentos Sofísticos e os Primeiros Analíticos, nada indica que tenha conhecido as grandes obras sobre a moral, a física e a metafísica.

2 – Platão e Aristóteles

O conceito de universal e o problema que ele implica é bastante antigo, e remonta da universalia medieval até o tà kàtolon de Aristóteles e o eidos e ideai de Platão. Platão pode ser tomado como o originador desse tópico filosófico perene, e daí nós lembramos da recorrente frase de A. Whitehead de que toda a história da filosofia não passa de um amontoado de notas de pé página a Platão. Ele acreditava que a existência dos universais era necessária não apenas ontologicamente – para explicar a natureza do mundo, mas também epistemologicamente – para explicar a natureza da nossa experiência nesse mundo. Seu conhecido argumento apontava os universais como formas que existem em si mesmo num domínio espiritual, transcendente. Uma pessoa bela participaria da forma de beleza. Essa forma só pode ser conhecida pelo intelecto, e não pelos sentidos, e por isso é assinalada a importância da dialética – o jogo de perguntas e respostas entre mestre e aluno – como a única maneira de fazer a alma ascender, por degraus, da lama em que se encontra presa pelos sentidos até a contemplação da forma. O particular é apenas uma manifestação da forma, e segundo a epistemologia platónica, para conhecer, é necessário ter acesso aos universais eternos e imutáveis. O próprio Platão argumenta contra a teoria das formas no Parmênides. Aristóteles, como é sabido, critica o mestre. As suas duas principais objeções apontam que Platão, fazendo da Forma uma substância separada e perfeita introduziu um dualismo exagerado e desnecessário, e que Platão confunde a categoria da substância com a de qualidade. Colocar o conhecimento em um outro nível, numa matriz perfeita, não resolveria o problema, apenas o adiaria. As questões feitas sobre os particulares se repetiriam nas formas. O segundo ponto seria um erro lógico, já que a forma seria ao mesmo tempo uma substância individual — requerida pela tese da separação – e uma qualidade, necessária para ser um universal. A lembrança será útil para contrapor mais adiante a posição de Abelardo sobre o problema. O estagirita defende a existência apenas dos individuais, como Sócrates ou esta cadeira em que estou sentado. Os universais existem apenas como elementos comuns nos particulares. O universal X é tudo o que é comum ou dividido aos particulares Y. É predicado dos particulares. Os individuais são classificados por géneros na medida em que tem as mesmas propriedades. Quanto mais diferenças nas qualidades determinadas, mais refinada se tornam as classificações.

3 – Conceito

O universal pode talvez ser definido como um objeto abstraio ou termo que abrange coisas particulares. Aquilo sobre o qual se podem predicar várias coisas. A definição é difícil, o universal é mais próprio de ser pensado[i]. Um adjetivo abstrato como beleza, justiça, coragem e bondade etc. Dizer de dois objetos que cada um uma tábua, um quadrado, ou é amarelo é dizer que há algo comum nestes objetos, que pode ser dividido com muitos outros e em virtude do qual os objetos podem ser classificados como géneros. Essa classificação não é somente possível para o uso científico, como também inevitável, já que toda experiência passa por coisas classificadas em géneros, por mais que estes possam ser vagos ou desarticulados. A palavra Sócrates é um nome "próprio". Supõe-se que mediante este nome estejamos nos referindo a uma pessoa determinada, a uma entidade concreta e singular cujo nome é "Sócrates". Da entidade concreta e singular, ou da pessoa, cujo nome é "Sócrates", podemos dizer que é um homem, estatura baixa, com barba. Estes termos são usados para qualificar "Sócrates", são nomes comuns usados para determinar uma qualidade singular de modo universal, por isso são chamados "universais". Lembramos aí da questão de Agostinho sobre a relação entre as ideias de Deus relativas às coisas sensíveis. O problema capital dos universais, portanto, diz respeito ao seu status ontológico, pois se trata de determinar que espécies de entidades são. Não obstante isso, há importantes implicações e ramificações em outras disciplinas: a lógica, a teoria do conhecimento e até mesmo a teologia. São três as questões levantadas a partir dos universais: a do conceito, a da verdade e a da linguagem. A predominância dos universais na Idade Média se deve, em parte, por derivarem dos únicos textos clássicos disponíveis no período e em parte porque envolvia o dogma da natureza ao mesmo tempo e única e tríplice de Deus.

4 – Os medievais e os universais

A enunciação do problema propriamente dita foi dada na tradução de Boécio de Isagoge, conforme se segue:

"Como é necessário, Crisaoro, para compreender a doutrina das categorias de Aristóteles, saber o que é o género, a diferença, a espécie, o próprio e o acidente, e como este conhecimento é útil para a definição e, em geral, para tudo o que se refere à divisão e à demonstração cuja ,doutrina é muito proveitosa, tentarei em um compêndio e a título de instrução resumir o que nossos antecessores disseram a respeito, abstendo-me de questões demasiado profundas e mesmo detendo-me pouco nas mais simples. Não tentarei enunciar se os géneros e as espécies existem por si mesmos ou na inteligência nua, nem, no caso de subsistir, se são corporais ou incorporais, nem se existem separados dos objetos sensíveis ou nestes objetos, formando parte dos mesmos. Este problema é excessivo e requeriria indagações mais amplas. Me limitarei a indicar o mais plausível que os antigos e, sobretudo, os peripatéticos disseram razoavelmente sobre este ponto e os anteriores" (Isagoge, I, 16)". As três questões postas são as seguintes: "Se os universais existem na realidade ou apenas no pensamento: utrum verum esse habeant na taníum in opinione consistant; em seguida, caso de fato existissem, se são corpóreos ou incorpóreos; em terceiro lugar, se são separados das coisas sensíveis ou se as entregam. A estas três questões acrescenta por conta própria uma quarta, destinada a se tornar clássica, como já o eram as três primeiras: "os géneros e as espécies ainda teriam uma significação para o pensamento se os indivíduos correspondentes cessassem de existir?" (GILSON, pg 344)2[ii]. Muitos autores medievais se referiram a esse problema e geraram assim as posições clássicas sobre o assunto: a dos realistas — chamados de antiqui doctores – e a dos nominalistas.

O extremo realismo platônico era representado por Guilherme de Champeaux: uma natureza real e comum está presente em cada ser das espécies, que diferem uns dos outros por seus acidentes, não pela substância.

Os universais são coisas (res). Abelardo irá sugerir que duas pessoas então podem ser uma e a mesma substância. Champeaux expica-se argumentando que são o mesmo não essencialmente, mas indeterminadamente. José e João são o mesmo em serem homens, pois pertence ao homem ser mortal e animal racional, mas a humanidade em cada um não é a mesma, mas similar, porque são dois homens. A própria física dos corpos, para Abelardo, destitui essa doutrina de sua veracidade, já que a experiência atesta as coisas como realmente distintas umas das outras. Se o universal animal existe inteiramente na espécie homem e na espécie cavalo, é ao mesmo tempo racional e uma e não racional em outra, o que é contraditório, e portanto, impossível. As objeções do aluno Abelardo ao seu mestre Guilherme Champeaux fizeram com que esse resignasse de sua posição filosófica.

Os nominalistas supunham que os universais não são reais, mas se encontram depois das coisas (universalia post rem). Tratam-se, portanto, de abstrações da inteligência, reduzidos à materialidade das palavras. Apenas os nomes são universais, as coisas nomeadas são sempre singulares. Abelardo sofreu forte influência desta doutrina, embora não seja um nominalista e tenha criticado o extremismo de Roscelino. Este, conforme a definição de Boécio, afirmava: "Nihil enim aliud est prolatio (vocis) quam aeris plectro linguae percussio ". É controversa a classificação da teoria de Abelardo. Embora ele seja chamado às vezes de nominalista, é mais acertado chamá-lo de conceítualista ou realista moderado, sendo, no entanto ambas as opções simplificações. Gilson aponta que a posição de Abelardo não se encontraria numa "linha ideal que ligaria Aristóteles a Santo Tomás de Aquino", mas antes a "gramática especulativa a Guilherme de Ockham"[iii]

5- Abelardo

Abelardo mantinha que os universais existem como pensamentos baseados no particular das coisas, enquanto os nominalistas supunham existência apenas nas coisas, e negavam. Para Abelardo, o universal não é um som (vox, emissão de voz, flatus voeis), como era para Roscelino[iv], mas uma palavra (sermo), ou seja, um som com significado, o sentido dos nomes (nominum significatio). Adquire seu sentido pelo seu uso referencial, sendo a referência mediada por uma ideia geral que é uma imagem composta. O conhecimento depende desse processo de abstração, uma vez que a separação entre forma e matéria -juntas na natureza – é empreendida pelo intelecto. Este "não se engana pensado à parte seja a forma, seja a matéria; ele se enganaria se pensasse que a matéria ou a forma existem a parte, mas tratar-se-ia de uma falsa concepção dos abstratos, não da sua abstração" (GILSON, pg 350). A existência dos universais está relacionada a um evento psicológico, a uma intencionalidade do pensamento. Essa teoria pode ser chamada de psicológica e serviu para responder as quatro questões.

Sobre a primeira questão, Abelardo responde que

"na verdade, significam pela denominação coisas verdadeiramente existentes, isto é, as mesmas que os nomes singulares e que, de modo algum, estão colocados numa opinião vazia; contudo, de certa maneira, consistem, como ficou estabelecido, numa inteleçção isolada, nua e pura." (pg 74)

7

Sobre a segunda questão, convém a seguinte citação:

"(…) de um certo modo, os corporais, isto é, separados na sua essência e os incorporais quanto a designação ao nome universal, porque nao os denominam separada e determidamente, mas confusamente, como o ensinamos acima suficientemente. Daí também, os próprios universais serem chamados corpóreos quanto à natureza das coisas, e incorpóreos quanto ao modo de significação, porque embora denominem o que é separado, não o denominam, separada e determinadamente", (pg 75)

Para a terceira questão, Abelardo concede que os universais estejam nas coisas sensíveis, mas dirá que "concedemos que todos os géneros ou espécies encontram-se nas coisas sensíveis. Mas porque sua intelecção era sempre chamada de isolada da sensação, eles não pareciam de modo algum estar nas coisas sensíveis. Por isso perguntava-se com razão se poderiam alguma vez estar nos sensíveis; e responde-se que, quanto a certos deles, que estão, mas de tal maneira que, como foi dito, permanecem naturalmente a parte da sensibilidade".

Sobre a quarta questão que formulou, Abelardo responderá na p. 76: "de modo algum admitimos que haja nomes universais quando, tendo sido destruídas as suas coisas, eles já não são predicáveis de vários, porquanto não são comuns a quaisquer coisas, como o nome da rosa, quando não há mais rosas, o qual, entretanto, ainda é então significativo em virtude da intelecção, embora careça de denominação, pois de outra sorte não haveria a proposição: nenhuma rosa existe".[v]

BIBLIOGRAFIA

8

Porfírio, o Fenício: Isagoge: introdução às categorias de Aristóteles. São Paulo : Matese, 1965.
The Encyclopedia of philosophy. Paul Edwards, editor in chief. New York, Macmillan 1967
Abelardo, Pedro. Lógica para principantes. Trad. Carlos do Nascimento. Vozes, 1994.
Ferrater-Mora, José. Diccionário de Filosofía. Ariel, Barcelona, 1994.
Gilson, Etienne. A Filosofia na Idade Media, Trad. E. Brandão. Martins Fontes, 1995.

[i] Aristóteles o define como "aquilo que é naturalmente apto para ser predicado de muitos", oposto ao singular – "aquilo que predica de um só".

[ii] 2 Filosofia na Idade Media, A; E. Gilson; Trad. E. Brandão. Martins Fontes, 1995.

[iii] 3 Op Cit, pg 350

[iv] 4 "Fuit autem, nemini magistri nostri Roscellini tam nsana sententia ut nullam rem partibus constare vellet,
sea sicut solis vocibus species, ita et partes ascridebat" (Abelard, "Liber divisionum")

[v] 5 Também citado por Carlos Ribeiro Nascimento, tradutor da obra, em sua excelente tradução, que foi muito útil para esclarecer e acompanhar a linha evolutiva do rico argumento de Abelardo.

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