25 de novembro de 2015

MUITO ALÉM DAS MODAS DO PENSAR



Nietzsche virou febre por algum tempo nas redes sociais e na universidade, sem que, em geral,  se atentasse para as nuances do pensamento paradoxal desse grande filósofo. Neste texto, Miguel Lobato Duclós (1978-2015) dribla as facilidades do tema e pega frase a frase de um parágrafo do autor e esmiúça detalhadamente cada aspecto sugerido ou implícito nas palavras utilizadas. É um jogo complexo, mas sempre claro e límpido, como era o estilo de Miguel Lobato Duclós, um filósofo que não recusava nenhum assunto e a tudo abordou com sua lucidez e sua determinação.



É mais um exemplar de sua importante obra autoral, desenvolvida desde o início da mocidade e que atingiu a maioridade antes de ter completado 30 anos. E que, com sua despedida aos 37 anos, fica marcada eternamente como uma referência filosófica contemporânea, plenamente identificada com os clássicos. Transcende modismos pela seriedade e transparência de sua paciente e árdua busca de conhecimento.

http://www.consciencia.org/nietzsche3.shtml


“ANÁLISE DO PARÁGRAFO 22

DE PARA ALÉM DE BEM E MAL,

DE FRIEDRICH NIETZSCHE”



POR MIGUEL DUCLÓS

O parágrafo em questão é citado por partes.

(…) Perdoem este velho filólogo, (…)

Aqui o autor faz referência à sua juventude, quando foi professor precoce de filologia na Basiléia, onde ministrava cursos sobre a Grécia e filologia clássica. Nietzsche teve uma formação severa, desde o tradicional colégio de Pforta até o tempo na Universidade em que adquiriu uma notável erudição, consultando até cem livros por dia. É assim que entendo a expressão "velho filólogo". Começou muito cedo a exercer esta profissão, mas não é de forma algum velho à época da publicação de Para Além de Bem e Mal (85-86), quando era um jovem senhor de 41 anos. A filologia será também importantíssima na obra filosófica do autor – como este próprio aforismo mostra mais adiante -, sobretudo na construção do método genealógico.

O "perdoem" faz lembrar uma postura irônica que o autor adota no início do aforismo. Aqui fala também o ermitão, que tem uma postura diferente, construída a partir de seus estudos e meditações solitários, mas que levanta a sua voz para falar contra uma postura firmemente aceita na sociedade científica em sua época, oferecendo uma visão que, entretanto, não expressa a sua meditação mais íntima, pois, há algo de inexprimível no que a solidão revela.

(…) que não pode resistir à maldade de pôr o dedo sobre artes de interpretação ruins: (…)

A ironia prossegue. Àquele "perdoem" tão cristão do primeiro trecho, segue-se a afirmação de que o que o autor irá fazer como é uma "maldade". Com isso o autor prepara o terreno para desbancar aquilo que a ciência física moderna faz atualmente, e já prevê uma possível reação negativa de seus adversários.

Temos a introdução de um conceito, o de artes-de-interpretação (Kunst der Auslegung?), cuja totalidade, evidentemente, me escapa. No aforismo inteiro parece estar presente aquela máxima de que "não existem fatos, somente interpretações". A interpretação é uma atividade que expressa a força criadora de quem interpreta, um movimento que não se conclui, mas se prolonga infinitamente, aonde se pode provar tanto uma coisa quanto o seu contrário, sendo ambas – como o autor coloca mais abaixo – a produção de uma vontade que é doadora de sentidos. "Qualquer coisa pode ser verdade, desde que pronunciada com a entonação certa", poder-se-ia dizer zombeteiramente.

O autor já passa da ironia à crítica, ao dizer que irá falar de artes-de-interpretação ruins, ou seja, rotula a atividade do cientista físico segundo o seu próprio conceito onde tudo pode ser visto como interpretação, e produz uma valoração negativa, segundo uma "perspectiva avaliadora". Vejamos a natureza desta crítica.

(…) mas aquela "legalidade da natureza", de que vós físicos falais com tanto orgulho, como se … – (…)

Confirmado, o autor elege o alvo do martelo: trata-se dos físicos de sua época em geral. A ironia prossegue ao apontar o "orgulho" com que os físicos falam de certo aspecto de sua doutrina. Entendo isso como ironia uma vez que as ciências naturais pretendem para si uma certa "objetividade", baseada na repetição e comprovação de experiências e resultados. A "maldade" então se revela, o autor pretende retirar dos físicos uma certeza que é de certa forma o orgulho ingênuo de seu ofício.

As aspas em "legalidade da natureza" também indicam ser este um conceito próprio da física, talvez também se atinja aí o positivismo, ou um determinismo. De qualquer maneira, o conceito passa a noção de um direito baseado na experiência, na impessoalidade da lei natural, universal a todos, que, portanto devem a ela se conformar.

Não entendi a função do "como se …" . A frase fica inconclusiva.

(…) só subsiste graças a vossa interpretação e "filologia" ruim – (…)

Confirma-se que o autor vê os conceitos físicos segundo o seu próprio conceito de artes-de-interpretação. Só temos interpretações, diz o filósofo. É necessária ainda a construção de uma "arte" de interpretar, de um esmerar-se e de uma técnica, portanto. Já há aqui uma contraposição entre uma postura privilegiada, superior, e outra mais disseminada. A ligação entre interpretação e filologia se faz novamente sentir, e podemos supor que Nietzsche, como o "velho filólogo" é quem possui uma arte de interpretação superior, ou pelo menos a anuncia para o porvir.

Ao meu ver está implícita também uma postura antidogmática na afirmação de que a "legalidade da natureza só subsiste etc", se tomarmos o dogmatismo no seu significado original – filosófico e não religioso – como uma opinião admitida e repassada por uma escola sem que passe pelo crivo da crítica, ou de um exame mais detalhado.

(…) não é nenhum estado de coisas, nenhum texto, (…)

O martelo fala, a postura é claramente afirmativa, abandona-se a ironia. O estado de coisas é algo de que fala a física clássica, uma determinação de forças segundo leis do universo, que, se conhecidas, podem levar o homem a conhecer o funcionamento da natureza e agir de acordo. A pretensão de se alcançar tais leis é negada, e criticada como ingênua como veremos a seguir.

A colocação do termo "texto" entre aspas é curiosa, não creio, mais uma vez, que compreendi bem. Mais adiante o autor reforça a oposição entre texto e interpretação; talvez o sentido dado seja o de "palavras que se citam para provar qualquer doutrina", ou a pretensão da física de que se pode ler a natureza como a um texto.

(…) mas somente um arranjo ingenuamente humanitário e uma distorção de sentido, (…)

O "somente" reforça o objetivo avassalador da crítica, anteriormente citado, uma vez que associa um caráter diminutivo a algo orgulhosamente sustentado. A postura humanitária é também tachada de ingênua. Isso remete à postura refletida do ermitão, do Zaratustra que medita dez anos na montanha (embora Zaratustra desça da montanha para discursar, justamente por "amor aos homens"), em contraposição ao senso comum. Mesmo a física pode pertencer a um populacho, se pretende que a lei da natureza seja comum a todos e ignora o que é "senhor de si ou privilegiado". Este arranjo "humanitário" é oposto, também, àquela lei universal independente, factual, de que os físicos se orgulham. A distorção de sentido é apontada pela avaliação filológica, que no trecho anterior já afirmava a interpretação ruim.

(…) com que dais plena satisfação aos instintos democráticos da alma moderna! (…)

Uma ligação entre modernidade, democracia e humanitarismo, como coisas que interessam a todo o gênero humano, é associada com a lei natural a qual todos estão sujeitos segundo a física. Essa doutrina é determinada no tempo, como uma postura típica de uma época passageira. Em épocas antigas esse "conhecimento científico" não seria possível, e pode certamente ser superado em épocas futuras, como aliás, a teoria das mudanças de paradigmas afirma. O conhecimento, como diz o belo trecho §1 de "Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral", gerou o minuto mais mentiroso e soberbo da história do universo cintilante.

Há uma crítica sagaz ao esclarecimento ilustrado, racional, que gerou a ciência moderna, uma vez se nega a ela a certeza racional e a determina como fruto de instintos não-racionais. A crítica fica ainda mais aguda se considerarmos que a "igualdade, liberdade e fraternidade" que apregoou a revolução francesa derivou, de certa forma, do esclarecimento iluminista.

(…) "Por toda parte igualdade diante da lei – nisto a natureza não está de outro modo nem melhor do que nós": (…)

Com essa "citação" reforça-se o que se disse antes. O homem espelha na natureza aquilo que vê em sua própria natureza e sociedade. Uma crítica algo feurbachiana, atéia, contra a arrogância do ser humano, ínfimo diante da imensidão do universo, e que não tem os modos cavalheirescos para conquistar a verdade, essa dama que costuma se velar, que ama somente um guerreiro.

(…) um maneiroso pensamento oculto, em que mais uma vez está disfarçada a plebéia hostilidade contra tudo o que é privilegiado e senhor de si, do mesmo modo que um segundo e mais refinado ateísmo. (…)

Um desmascaramento. A doutrina dos físicos é algo que é expresso exteriormente com vistas à universalidade, mas que apenas oculta um ressentimento de pessoas inferiores contra o que é nobre ou privilegiado, contra o que a si mesmo comanda, o "homem superior", – que não é subjugado por uma moral ou que participa da mesma lei que comanda o populacho – mas sim que afasta de si com apenas uma inflexão todo ressentimento, toda mágoa, e pode viver, zombeteiro, alegremente e plenamente. Este desmascaramento faz parte do pensamento do autor, que afirma toda filosofia ser filosofia de fachada, mesmo a sua própria filosofia (como se vê no §289 do mesmo livro). À filologia, se une, talvez, uma espécie de psicologia, já que o autor identifica um padrão – a hostilidade contra tudo o que é privilegiado – que determina um comportamento e a criação de pensamentos, doutrinas ou conceitos que apenas disfarçam esse aspecto negativo ou derivam dele. Isso será mais bem desenvolvido no próximo livro de Nietzsche, "Para uma genealogia da Moral", nos anos seguintes. Contudo, o alvo lá será o desmascaramento da moral religiosa, do bem e mal como algo divino ou absoluto. Aqui se vê que Nietzsche não critica somente a religião, mas usa os mesmos argumentos para atacar a ciência.

A ciência, pretensamente atéia, não se livrou, contudo, do não-relativismo, de algo universalmente válido. No campo das experiências e dos fenômenos abandona a "coisa-em-si" da metafísica ou da religião, mas substitui essa por sua própria linguagem cifrada, sua interpretação e seus paradigmas, como a lei da causalidade. Acaba caindo nas mesmas ciladas, acaba empregando o mesmo ressentimento mal disfarçado do judaico-cristianismo. Poder-se-ia perguntar, parafraseando o autor: "Seria o homem um equívoco da legalidade da natureza? Ou a legalidade da natureza um equívoco do homem?". Apesar de este ateísmo estar agora mais bem adornado com seu alcance científico (e por isso mais refinado), Nietzsche consegue lhe tirar a pompa e apontar sua ingenuidade.

(…) "Ni dieu, ni maítre" – assim quereis vós também: e, por isso, "viva a lei natural!" – não é verdade? Mas, como foi dito, isso é interpretação, não texto; (…)

Os físicos, então, ignoram essa hierarquia natural, expressa em múltiplos níveis e formas. O ateísmo não admite deus, mas não quer também admitir um senhor, dessa forma nivela tudo por baixo. Iguala o "homem superior, senhor de si" com o populacho ressentido, numa manifestação mal disfarçada do instinto democrático moderno. O "não é verdade?" é uma ironia que, como as outras, engloba uma crítica severa e profunda, já que, no autor, a "vontade de potência" se contrapõe à "vontade de verdade" que a parte predominante da tradição filosófica ocidental dos "sábios dos sábios" buscou até Nietzsche

(…) e poderia vir alguém que, com a intenção e a arte de interpretação opostas, soubesse, na mesma natureza e tendo em vista os mesmos fenômenos, decifrar precisamente a imposição tiranicamente irreverente e inexorável de reivindicações de potência – (…)

Este alguém poderia ser o próprio Nietzsche? Neste trecho há apenas uma estocada, própria do aforismo, não um combate pontual de toda doutrina física. Embora haja este projeto futuro da construção dessa doutrina oposta, o próprio aforismo já a combate inteiramente, pois nega, com suas linhas mestras, o caráter geral sob o qual se funda essa "legalidade da natureza". O aforismo se afigura como aspecto da arte-de-interpretação, que manifesta o poder criativo daquele que interpreta.

Assim como em outras épocas já se afirmaram peremptoriamente outras "verdades" acerca do universo, embora o mundo e os fenômenos sejam praticamente o mesmo, também esta verdade é passageira, ou como se apontou, fruto de sua época. Uma mudança de interpretação pode implicar no inteiramente oposto do que é aceito.

O autor, porém, já dá mostras de sua própria arte-de-interpretação e coloca, na figura desse "alguém", a sua visão. A potência tem um caráter biológico, a função da vida é a potência, dessa forma o conhecimento é entendido como uma reivindicação da vontade de potência. Aquilo que os físicos interpretam como lei natural, nada mais é, portanto, do que máscara e uma busca de sentido – ainda que distorcido – feita por uma interpretação que expressa reivindicações de potência. Vejamos mais abaixo o que o autor nos conta sobre a "Vontade de Potência".

(…) um intérprete que vos colocasse diante dos olhos a falta de exceção e a incondicionalidade que há em toda "vontade de potência", em tal medida que quase toda palavra, mesmo a palavra "tirania", se mostrasse, no fim das contas, inutilizável, ou já como metáfora enfraquecedora e atenuante – por demasiado humana; (…)

O conceito de vontade de potência é exposto pela primeira vez em "Da Superação de si" na segunda parte do Zaratustra. Lá já está expressa a vontade de potência como a verdadeira força que impele os filósofos a buscar a verdade, a falar de bem e mal. Na busca de existência, de sentido, fala mais alto a vontade de potência, pois o que existe não pode querer vir ainda à existência. Este ponto atinge diretamente a vontade de existir oude viver, tal como expressa na filosofia de Schopenhauer.

Se todas as interpretações são falsas, máscaras, metáforas, aparências, é necessária a busca de um valor de fora, que extrapole essas interpretações. Tal valor é a vida, o único valor em si mesmo. Dessa forma, uma arte-de-interpretação que valorize a vida – e não que negue o mundo – é preferível às interpretações ressentidas, frutos da hostilidade "contra tudo o que é senhor de si", que apenas enfraquecem essa busca incessante de poder. A vida, como único valor válido tem também um caráter necessário e calculável, da mesma forma que as leis da física, mas não porque seja ela fruto de uma lei ou de um aspecto de um todo ordenado. Vejamos a parte final do aforismo.

(…) e, que, contudo, terminasse por afirmas desse mundo o mesmo que vós afirmais, ou seja, que tem um decurso "necessário" e "calculável", mas não porque nele reinam leis, mas porque absolutamente faltam as leis, e cada potência, a cada instante, tira sua última conseqüência. (…)

A vontade é supremamente ativa. Sempre se manifesta e expande, sem cessar. Não tem uma finalidade, um objetivo, ou uma lei, mas a cada instante tira de si mesmo sua última conseqüência, de forma cega. Uma interação incessante de forças, que não encontra um fim, ou repousa em síntese dialética no absoluto, mas cuja própria natureza exige um eterno repetir-se.

(…) Posto que também isto seja somente interpretação – e sereis bastante zelosos para fazer essa objeção? – ora, tanto melhor! -(…)

O autor esquiva-se de orma divertida de uma possível refutação com base numa contradição performática e fornece uma chave de leitura para seus textos ao informar que o que escreve não corresponde às suas meditações mais íntimas e profundas. Supera também o velho paradoxo de Epimênides, o cretense, que diz "Todos os cretenses são mentirosos" e que pode também ser enunciado por "Essa frase é falsa". Neste paradoxo, se Epimênides fala a verdade, está errado, se está errado, fala a verdade, e a frase torna-se falsa. No caso de Nietzsche, se seu aforismo for apenas interpretação, como a interpretação que critica, ele não perde a validade, mas apenas ganha força.

Miguel Lobato Duclós, leia também no link


Nota: Além da tradução de RRTF na coleção Os Pensadores, Abril Cultural, foram consultados ainda: a tradução de Paulo César de Souza, um texto de Jorge de Moraes chamado "Da Interpretação: para uma compreensão da produção de sentidos na filosofia de Friedrich Nietzsche", e os dicionários filosóficos de André Lalande e José Ferrater Mora.

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