14 de agosto de 2014

PASSAGEM PARA O PERDÃO



Nei Duclós

Caverna, em cinema, é a câmara escura. Por onde entra a luz – porta, fresta, janela – é o olho do refletor emitindo seu rastro pelo breu. O contorno da figura que se desenha na visão precária de quem está no fundo da sessão é a imagem virtual de uma presença poderosa, o protagonista de um drama que a narrativa, costurada pela Sétima Arte, veste de humanidade. Normalmente é alguém que sofreu uma derrota, como John Wayne no final de Rastros de Ódio, de John Ford, com seu passo de pistoleiro, emoldurado pela sombra. Ou o médico indiano que virou vítima da fantasia de uma moça britânica, numa das obras primas de David Lean.

Essa linguagem que se reporta a si mesma é o jogo sutil de uma pintura em movimento, carregada de princípios e valores e exposta como uma pedra ao sol do meio dia de verão. Assim, revelados pela luz, aprendemos que o erro, o equívoco, o desvio, são comuns a qualquer nação, povo ou ideologia e a culpa migra em rodízio conforme cada evento. Ser oprimido não dá razão a ninguém, assim como pertencer ao povo opressor não dá carta branca para as acusações de culpa. Tudo é passageiro e minúsculo diante do Destino e do poder supremo da natureza. A única coisa que engrandece a humanidade é sua capacidade de perdão, fruto da lucidez e da coragem. É o que nos diz Lean em Passagem Para a India (1984).

A moça inglesa (interpretada por Judy Davis) que tem dúvidas sobre seu noivo e seu casamento, vê-se enredada pelo eco das cavernas quase inacessíveis. E sofre sob o sol da colônia, país cheio de armadilhas eróticas, como as ruínas esquecidas num ermo povoado de estátuas enormes em poses sexuais, habitadas por multidões de macacos selvagens. O moço indiano (ator Victor Banerjee) que quer ser incluído no universo britânico e força a barra para impressionar suas ilustres convidadas – a moça e sua idosa tia – acaba vítima da Justiça e é julgado por um estupro que não cometeu. O entorno de cada membro desse casal de protagonistas empurra para o erro: os ingleses, ofendidos com a ousadia do nativo que assediou a donzela; e os indianos, que transformam o pretenso estuprador em herói por ser prata da casa em oposição ao invasor.

A corda arrebenta nos mais fracos. Na mulher, que acaba reconhecendo que acusara um inocente, e o réu, que se transforma radicalmente: deixa de ser o solícito médico moreno para se transformar num odioso cidadão excluído que vê a chance de se libertar. O jogo muda de mão no transcorrer da história. Quem tinha razão a perde por entregar-se ao ódio. Quem deve ser perdoado agora é a moça britânica por ter sido vítima da incompreensão do acusado, que deixou-se levar pelo ressentimento. Em ambos os lados da contenda, destacam-se os apaziguadores, o amigo inglês (James Fox) que sempre confiou na inocência do acusado, Mrs. Moore (Peggy Ashcroft), que tem estima pelo rapaz, e o professor indiano (Alec Guiness, perfeito como sempre) que confia no desfecho já prescrito - pensamos ser a condenação, quando era a liberação do réu.

Lean nos surpreende a cada minuto. O som é um contundente personagem: o clima de assombro criado pelo eco na caverna provocado primeiro pela multidão e depois pelo moço indiano desesperado em  busca da sua convidada que tinha sumido de vista. No escuro da caverna e diante da iluminação que vinha da porta, onde se desenhava o perfil do seu pretenso algoz,  ela se entrega à ilusão: o ato sexual que não aconteceu, o estupro estava na sua ansiedade, vontade, atraso, na sua imaginação. No tribunal, debaixo do teto de vidro, ela consegue enxergar a verdade e, depois de assumi-la, receber o impacto da inundação das águas que estavam represadas. O orgasmo, representado pela água que escorre pelo chão no momento do falso crime, agora se transmuta no encontro de si mesma, quando decide retirar a queixa e enxergar sua própria culpa, a mentira, o erro, o equívoco.

É a vez então do réu, que revida e se afasta, envenenado pelo que lhe aconteceu (cadeia, invasão de domicílio, nome sujo). Mas isso lhe tira a razão. O reencontro, por meio de uma carta, é o final favorável desse drama em que o cinema é a sala escura da caverna, onde o evento é imaginado e, portanto, visto, trespassada pela luz que vem empurrada pelo sol do verão indiano.

Sutil, grandioso, emocionante, obra de gênio. Justifica a resposta à pergunta essencial. O que fizemos das nossas vidas? perguntarão. Fomos ao cinema, responderemos.

Nei Duclós

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