15 de abril de 2011

MANIPULAÇÕES



Nei Duclós

Denunciar injustiças cria estruturas teóricas que sobrevivem à denúncia, ganham vida própria e mudam de protagonistas conforme os interesses. Se você denuncia a opressão, qualquer um poderá se colocar no papel do oprimido. Independe das intenções originais. Pode facilmente ser desvirtuado. Isso acontece no atacado e no varejo. É fácil manipular uma denúncia. Se a Justiça pega um político em flagrante, ele vira vítima da ditadura e anuncia sua luta pela liberdade.

A luta pela igualdade acabou gerando uma classe privilegiada dos “mais iguais”, segundo insight de George Orwell em A Revolução dos Bichos. Estamos cercados hoje por esses exemplos. A defesa dos índios transformou algumas tribos em madeireiros. A luta pela reforma agrária gerou uma nova casta de negociantes de terras. A luta contra a ditadura desovou multidões de corruptos (isso não justifica nova ditadura, claro). A necessidade de democratizar a cultura abriu a guarda para a hegemonia da mediocridade. A sociedade do espetáculo, em função da libertação de comportamento, perdeu todos os escrúpulos. Ex-heróis fazem campanhas regiamente pagas. Países modelos de transformação viraram horrendas ditaduras.

Mudanças de paradigmas não podem ser desvinculadas da crítica ao processo de mudança, sob pena de a transgressão se cristalizar num novo status. A cidadania é desvirtuada quando sua lutas são apropriadas por protagonistas que negociam o discurso das reivindicações na superexposição das mídias e nos bastidores. Cidadãos escaldados desconfiam das ondas de pressão anti-tirania. Essa experiência imobilizadora é confundida com submissão. No lugar de condenarmos o que chamamos de "o brasileiro", devemos é procurar entender a complexidade da opressão e das reações a ela.

É fácil desmerecer a nação se nos colocarmos à parte, encobertas pela dupla cidadania, pela ilusão do “sangue” dos ancestrais ou pelo status (quando o resto vira “essa gente”) Não arrostar que o país é obra nossa, ou seja, de uma coletividade que deveria ser regida por políticas públicas decentes, é cair na tentação de colocar toda a culpa nos indivíduos. Vemos como tudo é culpa das pessoas, jamais das autoridades, como se a população tivesse escolha. Mosquito da dengue, por exemplo. Acabaram com os Mata-Mosquitos, funcionários públicos encarregados de dedetização. Acabaram com a fiscalização permanente, como tínhamos em décadas passadas. O que existe são campanhas publicitárias para não estocar água limpa a céu aberto.

Não é preciso voltar aos velhos tempos da dedetização em massa. Mas se existem novas formas de combate, elas devem ser implementadas a partir da ação dos agentes sanitários . Isso não pode ficar a cargo da população. A falta de esgotos e de encanamento para água potável é que geram os criadouros dos transmissores. Não é por opção pessoal da cidadania.

Os exemplos são inúmeros. Não é o povo, mas políticos que escolhem os políticos e os impõem por meio de campanhas milionárias e um sistema engessado de representação. Quando há corrupção, coloca-se a culpa nos eleitores. Está errado.


RETORNO - 1. Crônica publicada no jornal Momento de Uruguaiana. 2.Imagem desta edição: os mais iguais de Orwell. Tirei daqui.


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