19 de fevereiro de 2011

A VIDA É UMA PALAVRA


Nei Duclós (*)

No campo de futebol do Colégio Santana, o professor nos colocou nas escadarias para observar e descrever a paisagem. Na época, os alunos, muito espertos, achavam aquilo uma besteira, já que a poesia, a narrativa celebrativa da natureza, era o lugar comum da literatura acessível. Não tínhamos contato com os modernistas ainda. Só fui descobrir que existia Mario e Oswald de Andrade aos 19 anos, quando entrei no curso de Jornalismo da Ufrgs e fui apresentado,pelos professores, ao que tinha sido feito não apenas no século 20 no Brasil, mas a preciosidades como poemas de Fernando Pessoa e Garcia Lorca.

O mundo pode explodir à sua volta ou desmanchar-se em encantamentos, mas se não existe um mestre para apontar o caminho tudo nos passa lotado. Foi isso o que realmente aprendi no tempo longo em que passei comparecendo aos bancos escolares. Além de ter feito aquela trajetória completa de pré-primário, primário, ginásio e científico, ainda entrei em três faculdades até me acertar com História, que completei na Universidade de São Paulo. Tateei o conhecimento até chegar a algumas conclusões, que não são definitivas, mas ajudam neste difícil convívio com as palavras.

A verdade é que, lendo os parnasianos ou recitando Castro Alves e sem tomar conhecimento das revoluções culturais, eu sentia que faltava algo na literatura brasileira. Ter ido para Porto Alegre salvou a humanidade de um movimento literário que seria liderada pelo poeta iniciante da fronteira. Lembro que no início da minha vida universitária meus versos tinham a pomposidade do século 19, um excesso que aprendi a desbastar radicalmente nos anos posteriores. Foi um processo rápido. Em contato com a Praxis e o Concretismo e na conversa com meus pares, enxuguei até o osso o que se derramava pelo espaço em branco. Até ver, finalmente, que tudo não passa de vogais (a alma da linguagem) e consoantes (suas ferramentas mais resistentes).

Mas o que tenho de mais valioso levei da escola à beira do rio Uruguaiana. O gosto pelo estudo, o hábito de se concentrar para aprender, prestar atenção em aula, fazer os deveres de casa são coisas que me acompanham até hoje. Sou um cdf juramentado e nem a dispersão natural da época da juventude levou embora esse patrimônio arduamente conquistado em muitos anos de estudo.

Em frente à paisagem que se oferecia numa manhã bonita de céu azul e tempo firme, desses que não acontecem com tanta freqüência hoje, fui encarregado, junto com os outros colegas, de dizer alguma coisa sobre o rio, as nuvens, os pássaros, as casas, o país vizinho que víamos, absortos, de caneta na mão. Naquele momento, fiquei avesso às brincadeiras de jogar papel uns nos outros. Descobri ali a chance de fazer literatura apoiada pelos adultos. Eles queriam quem eu escrevesse! Não estava só naquele sonho louco de colocar palavras no papel. Existia um professor atento às letras que tomavam forma diante do dia luminoso.

Grande lição, inesquecível. Dívida impagável que temos com os que vieram antes e que parecem ter a sabedoria adquirida no nascimento.



RETORNO - (*) Crônica publicada na edição 327 do jornal Momento de Uruguaiana. 2. Imagem desta edição: Horsepower, obra de Ricky Bols.

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