22 de julho de 2009

O EXORCISMO EM CÁSSIA KISS


Nei Duclós

Cássia Kiss, no papel de Mariana na novel Paraíso, da Globo, incorpora a insanidade da mãe que acredita na santidade da filha. Está obsedada pelo Mal apresentado como a intensificação do Bem. Ela se transformou naquela criatura, por isso suas falas parecem ser espontâneas (deve ter improviso, mas isso faz parte). Trata-se de uma personagem-imã, que atrai o vazio da nacionalidade ágrafa e o preenche com palavras marcadas, idéias fixas, arranques, rezas, invocações, maldições, calúnias. É assustadora.

Mariana defende sua loucura em posição de combate, sempre em guarda e assim consegue dobrar quem a circunda. Todos desistem de lutar contra ela, a não ser por vias indiretas. Confrontá-la resulta no embate contra uma parede. Cássia entope a personagem dessa brutalidade para que possamos vê-la e, assim, nos livrar dela. Faz um auto-exorcismo, denunciando a obsessão como sintoma de uma doença maior, que toma conta do país. Não pode haver debate se cada indivíduo está tomado pelo fundamentalismo de suas certezas toscas, e com elas tenta manipular os semelhantes.

Na política, temos os eternos tungadores do dinheiro público. Na religião, os papa-bíblias com suas arengas em praça pública. Nas ciências humanas, os guetos ideológicos deglutindo teorias para o enriquecimento ilícito. Na literatura, os prêmios com cartas marcadas. Na mídia, a frescura instaurada como verdade única. Nos microfones, os falsos moralistas. Nas consultorias e auto-ajuda, os espertalhões superficiais e focados na desgraça alheia. Na educação, a burrice crescente e o analfabetismo endêmico. Nas instituições, o abandono. Nos negócios, a criminalização. Nas ruas, os assassinatos. Nas casas, os conflitos insolúveis. Na juventude, a morte em massa. Na terceira idade, a falta a de sobriedade.

Tudo isso conflui para uma personagem exagerada como Mariana, que não escuta, só cria monólogos, não luta pela felicidade da filha, só quer que ela cumpra o falso destino. Cássia Kiss não é apenas um destaque, é um petardo, uma bomba nuclear em meio à palermice interpretativa geral, capitaneada por Carlos Vereza, que, como o cura da aldeia, repete sua performance preguiçosa do coitadinho de voz trêmula. Cássia Kiss é o oposto. Ela mergulha fundo na sua obsessão, fazendo um contraponto poderoso numa narrativa frouxa, proposital para o horário, onde, acreditam os executivos da televisão, só existe abombado(a) sentado(a) em frente à telinha.

Suas conversas com a santa, suas orações autistas, as certezas criminosas, os monólogos aos arranques, a coerência de uma psicopata dão firmeza ao personagem, único rochedo em meio à maresia, onde o resto dos atores e atrizes, com algumas exceções, se escudam no falso sotaque caipira e choram o tempo todo. Os homens são uns bobalhões de chapéu de cowboy, menos o Reginaldo Faria, que tanto pode ser Brás Cubas quanto aquele coronel de fala mansa e dura da novela. Reginaldo poderia muito bem assumir uma fazenda e dar ordens, que todos obedeceriam; o cara detona.

As mulheres são umas frangas fofoqueiras - com exceção da Fernanda Paes Leme (na foto ao lado), subaproveitada no papel de filha do prefeito e que poderia fazer um estrago se tivesse admirador do gênero na direção. Com Fernanda em cena, há sempre graça e contenção. É uma interpretação suave, bem feita, mas que aparece pouco. Fica o "fio do demo" tomando conta de tudo, aquele bananão.

Cássia Kiss diz que para ela não tem personagem menor. Gosta de pegar um papel de pouca importância e arrasar. No caso de Mariana, é uma peça chave da novela. Ela aproveita ao máximo. Tira leite de pedra. Há espaço para a interpretação de nível mesmo em espaços condenados. Achei que Paraíso copiava a novela Cabocla. É pior: copia a própria novela Paraíso, de anos atrás. Sorte que tem Cássia Kiss para virar a mesa. Pode parecer óbvio fazer a beata louca. Pode parecer um lugar comum. Mas nesse caso, não é. Cássia manda ver na sua arte e quem ganha é o público.

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