14 de março de 2009

MERGULHOS NA SUPERFÍCIE


Nei Duclós

O universo é uma infinita superfície lisa onde deslizam os corpos celestes – planetas, estrelas, cometas. Estes, são como navios navegando no mar ou uma bola de plástico que anda ao sabor do vento na piscina cheia. Ou seja, não é a gravidade que segura essas criaturas. Elas não bóiam pelas forças de atração e repulsão existentes nos astros, como se acreditava. Mas pelas forças de atração e repulsão provocadas por esse deslizamento. Não se trata do velho éter. Mas de matéria invisível, densa, que paradoxalmente se comporta como superfície, mas funciona em três dimensões. Talvez ela seja a quarta dimensão tão imaginada.

Percebi essas coisas vendo como a brisa da tarde brincava com a bola na pequena piscina de plástico do quintal. Aconteceu logo depois de ver mais um filme (Blue Dhalia, 1946) com Veronica Lake, a estrela que dominou a cena nos anos 40. Ela costumava interpretar sempre o mesmo papel. A moça mínima, em tamanho e gestos, encantadora sem mexer uma linha do rosto, assedia o príncipe solitário em fuga. Normalmente, o cara é casado (Joel McCrea, Allan Ladd). A situação provoca o desencanto de uma aparente despedida que ela manifesta como a última cartada. “Ok, você está comprometido, mas posso voltar de vez em quando e te empurrar da piscina? Certo, você tem esposa, mas podemos dar uma última volta na praia?”

“Sei que você não é o assassino e eu poderia te ajudar”, diz, cercando seu objeto de desejo de todas as formas. Ela personificava assim a chance de existirem novos casais em plena época da guerra, quando a viuvez e os desentendimentos jogavam na rua pessoas solitárias. Sua determinação significa o fim da solidão para quem já tinha perdido a esperança. O assassino que é caçado pela polícia encontra nela o apoio e a compreensão que lhe faltaram desde a infância. O cineasta excêntrico que tenta partir sozinho para uma viagem de pesquisa para seu próximo filme acaba tendo Verônica Lake como companhia inseparável. O suspeito que tenta resolver as coisas sozinho só consegue escapar com sua ajuda.

Ela não é, portanto, a mulher fatal, como Bette Davis. Fatal quer dizer mortal. Mulheres que matam são fatais. Verônica é a doçura num tempo amargo, a força da concentração por um objetivo em tempos de dispersão. É também a completa inexistência de culpa por preferir o luxo e a relação estável. Sua autoconfiança extrapola a tela e conquista os espectadores. Nos diálogos, era exímia esgrimista. Ela rebatia as falas como se as tivesse realmente inventado.

O que tem a ver isso com a superfície por onde deslizam os astros? Acho que talentos minimalistas como Verônica Lake, que conseguiam criar uma marca só com o ondulado de seu cabelo sobre os olhos, são estrelas que contam com as misteriosas forças que colocam corpos e mentes em movimento. Você jura que é a gravidade, ou uma soma de detalhes superficiais, mas pode ser algo desconhecido, estradas invisíveis por onde passam a graça, a beleza, o charme e o amor que transcende o tempo e impregna a vida de algo que vale a pena.

RETORNO - Imagem desta edição: Allan Ladd tenta escapar do cerco da encantadora Veronica Lake em Blue Dhalia. Em vão. Estrela e astro deslizam em direção um ao outro, inexoravelmente.


EXTRA: DF PREVÊ AUTOCRÍTICA DO VATICANO

Há uma semana, escrevi aqui no Diário da Fonte, sobre a excomunhão em Olinda: "Esse episódio manchou o papado de Bento XVI, que terá de vir a público pedir perdão, revertendo a decisão." Hoje, a previsão confirmada. Vejam dois trechos, um do DF e outro do Globo.com

A PREVISÃO

“A fé não pode estar apartada da razão. Os dois pilares do templo seguram a abóboda dos princípios religiosos. Assumir uma posição obscurantista, sob o pretexto de que está defendendo a vida, é de uma limitação sem fim, tanto sob o ponto de vista intelectual quanto moral. É imoral achar que o estupro é menos grave do que o aborto. O estupro é crime, o aborto, neste caso específico, é uma solução médica para erradicar a conseqüência que colocava em risco a menina. Esse episódio manchou o papado de Bento XVI, que terá de vir a público pedir perdão, revertendo a decisão”.("A Igreja errou",
Diário da Fonte, 7 de março de 2009)

A CONFIRMAÇÃO

"Em artigo publicado pelo jornal da Santa Sé, o Osservatore Romano, neste sábado, o presidente da Academia Pontifícia para a Vida, Monsenhor Rino Fisichella, afirma que os médicos que praticaram o aborto na menina de 9 anos, grávida de gêmeos após ter sido estuprada pelo padrasto, não mereciam a excomunhão. "São outros que merecem a excomunhão e nosso perdão, não os que lhe permitiram viver e a ajudarão a recuperar a esperança e a confiança, apesar da presença do mal e da maldade de muitos", escreve Monsenhor Rino Fisichella, um dos mais próximos colaboradores do papa Bento 16 e maior autoridade do Vaticano em bioética."

"Segundo Monsenhor Fisichella, o anúncio da excomunhão por parte de D. Jose Cardoso Sobrinho colocou em risco a credibilidade da Igreja Católica. "Era mais urgente salvaguardar a vida inocente e trazê-la para um nível de humanidade, coisa em que nós, homens de igreja, devemos ser mestres. Assim não foi e infelizmente a credibilidade de nosso ensinamento está em risco, pois parece insensível e sem misericórdia", escreve o bispo."(
Globo.com, 14 de março de 2009)

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